Agitação, ansiedade, neurose: mecânicas modernas de aprisionamento

Estamos adoecendo apertando botões com a cara grudada em telas. Será que temos saída?

I. O que você vai fazer, Bernardo?

Subindo as escadas que levam à casa, a pedra molhada pela chuva de fim de tarde, eu só conseguia pensar em quão mal me sentia. Essa era a única coisa que conseguia pensar havia meses. Meu irmão pequeno escorregou nas pedras e, sangrando pelo tornozelo, começou a chorar.

Estando logo à frente dele, me virei e, atônito, notei como não conseguia sentir nada. Nenhum sentimento de preocupação ou ternura. Minha mente estava preenchida pela minha própria preocupação e, enquanto ele chorava, a voz incansável repetia:

"O que você vai fazer, Bernardo? Você sofre demais, o que vai fazer? Você precisa fazer alguma coisa. Você precisa fazer alguma coisa sobre a sua dor. Você precisa de uma solução. Isso é horrível, Bernardo. Isso é horrível. Você precisa fazer alguma coisa."

Eu fiquei ali, estático e horrorizado com a realização do estado mental ao qual havia chegado. Enquanto minha mãe descia as escadas para acudir meu irmão, dei as costas e fui para o meu quarto. Tranquei a porta. 

E tive meu primeiro ataque de pânico.

II. Uma mente em curto-circuito

"A nossa mente gira acelerada porque nós estamos buscando saída e aquilo naturalmente já é a perturbação. Enquanto nós estamos focados intensamente buscando uma saída, a gente passa por cima dos outros, não vê os outros, tem um comportamento estranho.

Uma das características das nossas crises é a gente não ver os outros. Ou seja, a gente está focado em alguma coisa muito específica e no caso da crise nós não estamos tendo vitória nenhuma, nós estamos nos sentindo ameaçados.

Esta sensação de ameaça, com a sensação de que não encontramos saída, e nós vasculhamos intensamente as saídas, é a característica de uma crise." —Lama Padma Samten

Ao longo dos anos, minha mente foi aos poucos se reequilibrando e só fora dos tormentos, olhando para trás, consegui ponderar sobre quais mecanismos me mantinham naquele redemoinho de dor e desespero.

Até hoje trato minha mente com muito cuidado, como talvez um joelho operado que funciona normalmente no dia-a-dia, mas tem que-se ficar atento aos seus sinais e usá-lo com carinho.

O que ficou claro ao longo do tempo é que certas visões de mundo eram a base para as neuroses se sustentarem e que certos hábitos têm imenso poder de me deixar mais desgovernado ou mais centrado e lúcido.

O processo da crise de ansiedade dá para se resumir de forma simples: eu tinha uma mente agitada que remoía as coisas freneticamente sem meu controle, e uma insegurança que vinha da infância acoplada com a perspectiva que o meu bem-estar dependia completamente de fatores externos num mundo instável. Praticamente o fósforo e a gasolina.

Sem conseguir parar de pensar sobre minhas inseguranças e medos, o subjacente era que eles eram reais. Caso contrário, eu não estaria remoendo sobre eles, correto? Quanto mais eu remoía mais real parecia e quanto mais real parecia mais eu pensava que precisava remoer, até quase literalmente dar um curto-circuito no meu sistema nervoso.

Parece familiar?

III. Todo dia um mini estresse pós-traumático de guerra

Ansiedade é o resultado de uma complicada cadeia de funcionamentos neuróticos e inefetivos da mente junto com visões muito restritas da realidade. Para mim, a ponta que desenrolou o nó foi a agitação da mente. Se eu tenho uma tendência de auto-mutilação mental e cultivo hábitos que agitam minha mente, é como diariamente dar meio bule de café para a criança transtornada que quebra tudo em casa. Primeiro tem que se tirar os estímulos e acalmar a criança para só depois conseguir tratá-la.

Sem perceber, estamos ativamente cultivando agitação e ansiedade. Cozinhamos e comemos com o Youtube na TV, enquanto intermitentemente respondemos o Whatsapp. Andamos de carro falando alto e com o som ligado. Passamos o dia nervosamente checando a cada tantos minutos o celular. Falamos e enquanto a pessoa responde pensamos em outras conversas imaginárias.

Nossos hábitos modernos de "multitasking" junto com a tecnologia sempre presente virou basicamente uma anti-meditação.

Cultivamos uma mente que salta de coisa em coisa, sem muito tempo para processar e praticamente nenhum momento de silêncio e espaço sem estímulos.

O distúrbio de ansiedade é algo sério e precisa ser devidamente diagnosticado por um profissional. Isso dito, muitas vezes, você não é ansioso nesse sentido médico. Você cultivou e foi empurrado a cultivar ansiedade quase a vida toda por uma cultura que lucra com a sua inquietação.

Diariamente tentando fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e num ambiente de estímulos constantes, treinamos nosso corpo a estar cada vez mais agitado e reativo.

Essa ansiedade que temos é como um mini estresse pós-traumático de guerra: um corpo que se habilitou para estar sempre alerta e energizado e agora não consegue parar.

Se estamos sempre pensando em centenas de cenários possíveis, desejando estar em diversos lugares diferentes do atual e de obter um sem-fim de coisas para finalmente poder relaxar, a mensagem que mandamos para o nosso sistema é que precisamos colocar todos os motores em potência máxima, que nossa atenção deve estar alerta o tempo inteiro.

IV. O combo neurótico da modernidade

Entra em cena o segundo monstro. Se a mente agitada é a criança transtornada, o bem-estar condicionado é o martelo que damos em sua mão. A maior doença que vejo na era moderna é o pensamento por vezes professado mas, no geral subconsciente de que "só vou ficar bem se".

  • só vou poder relaxar nas férias;
  • quando eu terminar a faculdade vai ficar tudo bem;
  • preciso resolver meu relacionamento para ficar bem;
  • preciso sair da casa dos meus pais para ser alguém na vida;
  • Fazemos de refém nosso bem-estar mais básico e pedimos um resgate altíssimo. Às vezes um resgate irreal, e vivemos sem relaxar.

Junte uma mente agitada que não consegue ser domada com a sensação que se precisa estar em algum lugar ou realizar algo específico para se estar bem ou ser alguém merecedor de valor e se tem o combo neurótico da modernidade.

V. 

O que acontece é que se internaliza um problema muito novo, cultural e sistemático, e vai se tratar como indivíduo, com terapeutas caros e remédios potentes. Isso quem tem condições. A maioria não tem. Terapeutas e remédios não são bem o problema (pelo menos não no nível dessa conversa aqui), mas da forma como fazemos é como poluir o ar e investir pesado em bombinhas de asma para as crianças.

Criamos uma cultura e ambientes agressivos aos sentidos, ficamos doentes, e julgamos que o problema somos nós, que a gente não aguenta, que precisamos de tratamento. Sim, precisamos de tratamento. Mas a cultura e nossos espaços também. Poluir países inteiros e querer tratar os sintomas de cada cidadão é incrivelmente ineficaz. E está sendo.

Precisamos aprender a cultivar uma mente lúcida e focada. E a liberar nossa sensação de valor e bem-estar. Precisamos inverter as coisas. É muito mais fácil trabalhar e cuidar de nós e dos outros estando bem e sentindo que temos valor inerente. Precisamos estar centrados para escolher um bom caminho de vida e poder engrandecer a vida dos outros, não o contrário.


publicado em 06 de Junho de 2019, 15:24
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Bernardo Vailati

Designer de experiências digitais que em 2018 tirou um ano sabático para aprender a escrever e ponderar a vida um pouco mais profundamente. Também explora a fotografia e tem um diário visual de pequenas poéticas no Instagram.


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