Africano: além do satírico personagem do Pânico na TV

Mia Couto, Chimamanda Adichie, Boubacar Traoré e Seckou Keita são parte de um rico quadro cultural africano

Nesta semana, o programa Pânico na TV deu contornos pro racismo circulante pelo seu personagem, Africano. Eduardo Sterblitch o interpreta para a paródia Pânico’s Chef - triste de assistir - na qual recebe breve descrição: ‘Planta e colhe’. O arquétipo tem pretensão de representar o africano típico, como diz o nome, e falha miseravelmente. Tudo o que representa é um conjunto de ignorâncias associadas à nacionalidade: escravo, pagão, animal.

Africano é constantemente ridicularizado. Alguém branco que, mascarado de roupas e tintas pretas, embaraça-se em performances que exalam preconceitos - desde a alusão à servidão até o descrédito às religiões de matriz africana. É representado como animal selvagem, cujos direitos à linguagem e civilização - como se ela fosse lá essas maravilhas… - lhe fossem negados.

O programa pediu desculpas, mas esse conteúdo está na televisão aberta e é mais popular do que imaginamos. A sátira também não é de hoje.

Blackface no teatro

A performance negativamente estereotipada do africano existe há pelo menos dois séculos. O ‘blackface’ é um personagem composto por atores pintados com carvão desempenhando papeis burlescos, caricaturados, zombeteiros. Fez muito sucesso durante o século XIX e a primeira metade do XX nos Estados Unidos, compondo parte de famigerados Ministrel Shows - apresentações de esquetes cômicas junto a música e danças -, até encontrar autonomia artística e consolidar-se, lamentavelmente, como gênero teatral.

Avacalhar negros era entretenimento no séc XIX

Acabou por volta de 1960, com a luta do movimento dos direitos civis dos negros no país, um século depois de seu auge e da abolição da escravatura - que veio difícil, suada, com muita resistência sulista. Essa porção do país, que tinha sua economia solidificada sobre monocultura e trabalho escravo, sofria e sofre, até hoje, com diferentes manifestações de racismo.

Vem à mente semelhante modelo em terras tropicais?

Tem mais caroço nesse angu

Não é de se estranhar que tenhamos processos criativos construídos nos ombros de obsoletos valores e preconceitos. É assim que as coisas costumam andar - produzimos com referenciais que temos e assim também lemos o mundo. Daí as risadas e o divertimento, que são resquícios de um imaginário social permeado de cismas, e bem comuns.

Mas a pulga que não nos deixa silenciar face a produções como Pânico’s Chef e Africano é a do florescimento. As sociedades africanas - que não são unitária e nem animalescas - produzem cultura pra valer, que está avançando e conseguindo espaço, apesar da predominância ocidental na atmosfera cultural popular. A pulga clama por mais informação sobre esses grupos, clama por luz sobre produtos artísticos incríveis - que hão de melhor orientar nossos olhares acerca da cultura e sociedade africana.

Está rolando por lá...

...o escritor Mia Couto. Moçambicano, é autor de diversos contos, crônicas, poesia e romances, tendo publicado mais de vinte obras. Foi publicado em mais de 22 países e ganhou importantes prêmios, entre eles o Prêmio Camões, em 2013.

Foi no mesmo ano que me marcou com a coletânea de contos reunidos em ‘O Fio das Missangas’. Mergulhei, pela primeira vez de forma alerta, no meu próprio universo feminino - e pelas palavras de um homem. Couto é as mais diversas mulheres que são, de alguma forma, relegadas ao esquecimento - por múltiplos outros ou até mesmo esquecidas de quem são.

Seus livros estão em português, sua língua materna - e isso já é deixa suficiente pra começar a leitura.

...a autora Chimamanda Ngozi Adichie. A moça nigeriana publicou sua primeira coleção de poemas ainda em 1997 e seu primeiro romance, Hibisco Roxo, publicado em 2003, lhe rendeu o Prêmio Commonwealth Writers por melhor primeiro livro.

Já falamos dela aqui no PapodeHomem. Em sua participação no TED Talks 2009 Chimamanda falou sobre o início de seu processo de escrita, aos sete anos, quando suas histórias eram povoadas por personagens brancos com cujos percursos não se identificava até o momento em que abraçou sua identidade africana.

Algum tempo depois, a escritora voltou ao TED Talks para falar sobre feminismo, que é hoje tema de um de seus livros. ‘Sejamos todos feministas’ foi publicado em fevereiro deste ano e, em 64 páginas, relata sua trajetória como mulher africana escritora.

...o músico malinense Boubacar Traoré. Guitarrista, cantor e compositor. Popular em seu país nos anos 60, Boubacar sumiu por tempos - perdeu a esposa, mudou-se para a França, trabalhou na construção civil para sustentar seus filhos - e, em 1990, foi redescoberto por uma gravadora britânica, pela qual lançou o disco Mariama.

Ano passado saiu Mbalimaou, palavra gostosa que nomeia sua mais recente produção. As canções têm efeito pacificador e uma variedade de instrumentos além da guitarra - que não poderia faltar.

...Seckou Keita. O também músico é baterista e toca a Kora, e a carreira internacional do senegalense começou em 1996. Já tocou ao redor da Europa e até no famoso Glastonbury e lançou cinco álbuns - não só em carreira solo, mas também em quartetos e quinteto.

O som da Kora em suas mãos é absolutamente hipnotizante e ele toca como quem faz a música enquanto lê a energia do ambiente.

Para continuar a conversa, recomendo um artigo da casa com diversas publicações fotográficas puxadas pela hashtag #TheAfricaTheMediaNeverShowsYou: A África que você não conhece! Pessoas publicam fotos lindas de um continente que não olhamos

Nos comentários, quaisquer materiais construtivos acerca de produção cultural, social e política africana são bem-vindos: enriquecem o debate e são gatilhos para a luz que queremos jogar em nosso olhar sobre a África.


publicado em 12 de Agosto de 2015, 10:36
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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