Podemos usar nossas próprias aflições mentais para cultivar uma mente mais saudável?

Um outro caminho possível é acolhermos nossas aflições, procurando não evitá-las ou tratá-las como inimigas.

Nota do editor: este texto é um trecho do livro Alegre Sabedoria, de Yongey Mingyur Rinpoche, respeitado mestre de meditação tibetana. Ele foi traduzido e publicado pela editora Lúcida Letra, do Vitor Barreto, amigo e autor publicado no PapodeHomem. É parte de uma nova parceria, que nasce do respeito que temos pelo trabalho da editora, que promove um conteúdo de florescimento humano que o PapodeHomem apoia. 

* * *


Quando eu tinha onze anos, saí do monastério do meu pai no Nepal e fui enviado para o monastério Sherab Ling, na Índia, em uma viagem de quase 5 mil quilômetros, para iniciar estudos rigorosos em filosofia e prática budista.

Era a minha primeira viagem para longe de casa e da família e a minha primeira experiência em um avião. Ao embarcar num voo de Katmandu para Delhi na companhia de um monge mais velho, que era meu acompanhante, fui tomado pelo terror.

O que aconteceria se o avião repentinamente perdesse a sua potência ou fosse atingido por um raio? As imagens do avião caindo do céu e se espatifando no chão enchiam minha cabeça, e me agarrei nos braços da cadeira com tanta força que as palmas das mãos doíam. O sangue correu para o meu rosto quando o avião decolou e me sentei rígido e suando no meu assento.

Vendo o meu desconforto, um homem sentado ao meu lado me disse, sorrindo e com a confiança de um viajante experiente, que não havia realmente nada com que me preocupar, pois o avião era bastante seguro. E uma vez que o voo era curto, de apenas uma hora, estaríamos aterrissando antes mesmo que eu pudesse perceber.

Suas palavras amáveis repararam um pouco o meu nervosismo, e eu me sentei por um tempo tentando praticar a observação da minha mente, conforme tinha sido ensinado. Então, de repente, ocorreu certa turbulência. O avião balançou e o homem quase pulou da cadeira, gritando em pânico. Durante o restante do voo fiquei imobilizado, imaginando o pior. Eu esqueci até de observar a minha mente. Eu tinha certeza de que ia morrer.

Felizmente, as treze horas de carro de Delhi para Sherab Ling foram muito menos agitadas. Na verdade, quando nos aproximamos das montanhas em que o monastério está localizado, a paisagem ganhou mais amplitude e a viagem tornou-se bastante prazerosa.

No entanto, sem que eu soubesse, haviam planejado uma recepção para minha chegada no monastério. Muitos monges residentes tinham feito um fila na colina que avista a estrada esperando para me saudar, tocando trompas cerimoniais de chifres de cerca de dois metros e meio de comprimento e oito tambores grandes e pesados. Como não havia comunicação telefônica naquela área na época, a assembleia estava lá esperando por um bom tempo, e quando finalmente viu um carro se aproximando, eles começaram a soprar as trompas e a bater os tambores. Mas, quando o carro parou, saiu de lá uma jovem indiana, – obviamente não eu – e a grande recepção teve um fim abrupto e constrangedor enquanto a mulher perplexa percorria seu caminho pelos portões.

Algum tempo se passou antes que meu carro fosse avistado lá longe na estrada e os monges começassem a soprar longamente os chifres e bater seus tambores. Assim que o meu carro se aproximou da entrada principal, a confusão novamente interrompeu os trabalhos. Mesmo adulto, não sou uma pessoa muito alta. Quando criança, eu era tão baixo que ninguém conseguia ver a minha cabeça atrás do alto e antiquado painel de instrumentos. De onde os músicos estavam não parecia ter uma pessoa sentada no banco da frente do passageiro. Sem querer cometer outro erro, eles abaixaram os chifres e as baquetas, e a música parou de repente.

Quando a porta do passageiro foi aberta e eu saí, fui recebido por uma fanfarra entusiasmada e tão alta que eu podia sentir as vibrações em meus ossos. Eu não tenho certeza do que foi mais alarmante: o barulho dos instrumentos ou a visão de todas aquelas pessoas estranhas enfileiradas para me acolher. Todo o terror que senti no avião voltou correndo, e acabei dando uma volta errada, andando na direção contrária. Se não fosse o monge que estava me acompanhado, eu não tenho certeza se teria conseguido entrar por aquele portão!

Minha estadia em Sherab Ling não teve um início particularmente auspicioso. Embora o monastério estivesse situado em uma região muito bonita, entre o Himalaia ao norte e ao leste e planícies onduladas ao sul e oeste, eu me sentia na maioria das vezes miseravelmente infeliz. Minha velha sensibilidade e ansiedade voltaram com força esmagadora, derrotando meus melhores esforços para recebê-las como meu pai havia me ensinado.

Tive problemas para dormir, e pequenas coisas conseguiam acionar uma reação em cadeia de pensamentos perturbadores. Tenho uma lembrança bem viva de, por exemplo, acordar uma manhã e descobrir uma pequena rachadura na janela do meu quarto. Depois disso, durante semanas, eu ficava com medo de que o vigilante da casa me culpasse por quebrar a janela e do problema que causaria para trocar o vidro.

As sessões de treinamento em grupo eram especialmente dolorosas. Havia cerca de oitenta monges residentes naquele momento, e todos pareciam bastante amigáveis uns com os outros, passeando em grupos entre as aulas e sessões de práticas, rindo e brincando. Eu era um estranho entre eles. A não ser pelas nossas roupas, não sentia que tínhamos algo em comum. Quando nos reuníamos no salão principal para os rituais de grupo, todos sabiam as palavras e os gestos muito melhor do que eu, e ficava me perguntando se eles estavam me olhando, esperando que eu cometesse um erro. A maioria dessas sessões era acompanhada por trompas, tambores e címbalos, às vezes fazendo um estrondo musical ensurdecedor que levava meu coração a bater forte e minha cabeça a girar. Eu queria muito sair correndo para fora da sala, mas com todos os outros olhando não tinha como fugir.

Os únicos momentos em que senti real conforto aconteceram durante minhas sessões particulares com meus tutores: Drupon Lama Tsultrim, que me ensinou línguas, ritual e filosofia, e Saljay Rinpoche, que me ensinou práticas de meditação.

Eu senti uma conexão especialmente íntima com Saljay Rinpoche, um lama muito sábio que tinha uma cabeça quadrada e cabelos grisalhos e que, apesar dos seus oitenta anos, tinha um rosto quase sem rugas. Na minha mente, ainda posso vê-lo com a sua roda de oração em uma das mãos e, na outra, seu mala (mala é conjunto de contas usado para contar repetições de mantras. Mantras são combinações especiais de sílabas antigas que formam uma espécie de oração e que podem ser usadas como um suporte para a meditação). Sua bondade e paciência eram tão grandes que cheguei a considerá-lo um segundo pai a quem eu poderia trazer problemas grandes e pequenos.

Suas respostas invariavelmente acabavam em lições muito profundas. Por exemplo, uma manhã enquanto lavava meu cabelo, um pouco de água entrou no meu ouvido. Eu tentei de tudo para me livrar dela, limpando o lado de dentro da orelha com uma toalha, balançando a cabeça, torcendo pequenos pedaços de papel de seda dentro da orelha, mas nada ajudou. Quando contei isso a Saljay Rinpoche, ele me aconselhou a derramar mais água no meu ouvido, e depois tombar a cabeça para deixar tudo escorrer para fora. Para minha surpresa, funcionou!

Rinpoche explicou que esse era um exemplo de um princípio, ensinado há muito tempo pelo Buda, de usar o problema como o antídoto. Timidamente, eu perguntei se a mesma abordagem poderia ser usada para lidar com pensamentos e sentimentos.

Ele me olhou com curiosidade, e logo me vi derramando toda a história de como eu tinha sido ansioso em toda a minha vida; do medo que por vezes me atacava com tal violência que eu mal podia respirar; de como eu tinha tentado observar a minha mente de uma forma amigável, sem julgamentos, como meu pai me ensinou; de meus pequenos sucessos lá no Nepal, onde tudo era familiar; e de como todos os velhos problemas ressurgiram ainda mais fortes nesse ambiente novo, estranho.

Ele ouviu até que eu não tivesse mais palavras e, em seguida, respondeu com a seguinte história.

“O Tibete está cheio de estradas longas e solitárias, especialmente nas montanhas, onde não há muitos vilarejos ou cidades. Viajar é sempre perigoso, porque quase sempre há bandidos escondidos nas cavernas ou por atrás de pedras que ficam nas laterais da estrada, esperando para assaltar e atacar até os viajantes mais atentos. Porém, o que as pessoas podem fazer? Para ir de um lugar a outro, elas têm que passar por essas estradas. Podem viajar em grupos, é claro, e se os grupos forem grandes o suficiente, os bandidos talvez não os ataquem. Mas isso nem sempre funciona, porque os bandidos geralmente veem no grupo maior a oportunidade de roubar mais. Às vezes as pessoas tentam se proteger contratando guarda-costas. Mas isso também não funciona muito bem.”

“Por que não?”, perguntei.

Ele riu. “Os bandidos são sempre mais ferozes e têm melhores armas. Além disso, se acontecer uma luta, há mais chance de as pessoas se machucarem.”

Seus olhos se fecharam, a cabeça pendeu, e eu pensei que talvez ele tivesse adormecido. Antes, porém, que eu pudesse pensar em alguma maneira de acordá-lo, ele abriu os olhos e continuou.

“Viajantes inteligentes, quando atacados por bandidos, podem fazer um acordo com eles. ‘Por que não contratamos vocês para serem nossos guarda-costas? Podemos pagar um pouco agora e mais depois, quando chegarmos ao fim da nossa viagem. Desse modo, não haverá mais lutas, ninguém vai se machucar e vocês ganharão mais do que se apenas nos roubassem na trilha. Menos perigo para vocês, porque ninguém irá caçá-los nas montanhas, e menos perigo para nós, porque vocês são mais fortes e têm melhores armas do que qualquer guarda-costas que pudéssemos contratar. E se vocês nos mantiverem em segurança ao longo da estrada, podemos recomendá-los a outras pessoas e, em breve, estarão ganhando mais do que jamais poderiam se apenas roubassem as pessoas. Vocês poderiam ter uma boa casa, um lugar para criar uma família. Não teriam que se esconder em cavernas nem congelar no inverno ou ferver no verão. Todos se beneficiam.”

Ele fez uma pausa, esperando para ver se eu entendi a lição. Minha expressão deve ter dado a impressão de que não e, então, ele continuou.

“Sua mente é a estrada longa e solitária, e todos os problemas que você descreveu são os bandidos. Sabendo que eles estão lá, você fica com medo de viajar. Ou então você usa a atenção plena, mindfulness, como um guarda-costas contratado, e mistura isso com esperança e medo, pensando: ‘Se eu observar meus pensamentos, eles vão desaparecer’. Em qualquer uma das duas opções, seus problemas têm supremacia. Sempre parecem maiores e mais fortes que você.

“A terceira opção é ser como um viajante inteligente e convidar seus problemas para viajarem com você. Quando você está com medo, não tente lutar contra o sentimento ou fugir dele. Faça um acordo com ele. ‘Oi medo, fique por aqui. Seja meu guarda-costas. Mostre-me como você é grande e forte.’ Se fizer isso com bastante frequência, por fim o medo se tornará apenas mais uma parte da sua experiência, algo que vem e vai. Você se torna confortável com isso, e talvez até mesmo venha a contar com ele como uma oportunidade para apreciar o poder da sua mente. Sua mente deve ser muito poderosa para produzir problemas tão grandes, não é?”

Balancei afirmativamente a cabeça. Parecia lógico.

“Quando você não mais resiste a uma emoção poderosa como o medo”, ele continuou, “você está livre para canalizar essa energia em uma direção mais construtiva. Quando você contrata os seus problemas como guarda-costas, eles mostram o quanto a sua mente é poderosa. Sua própria ferocidade o torna consciente do quanto você é forte.” 

* * *
Para se aprofundar mais, recomendamos estas leituras: 

Para começar a meditar, com o Lama Padma Samtem

Coleção de textos d'O Lugar

* * *

Você pode comprar Alegre Sabedoria, de Yongey Mingyur Rinpoche, no site da Lúcida Letra. Clicando na imagem você já é levado para a página do livro. 


publicado em 01 de Abril de 2017, 02:32
Mingyur rinpoche jpg

Yongey Mingyur Rinpoche

Yongey Mingyur Rinpoche é um dos mais respeitados dentre a nova geração de mestres da tradição de meditação tibetana, cujos ensinamentos têm inspirado pessoas de todas as crenças ao redor do mundo. Seu primeiro livro, A Alegria de Viver, esteve na lista dos mais vendidos do New York Times, e foi aclamado pela Revista Buddhadharma como acessível, instigante e muito esclarecedor.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura