Adam Curtis: dois documentários imprescindíveis | WTF #37

Quando escrevi o “11 documentários que você precisa assistir para entender o mundo hoje”,um leitor me admoestou (de forma bastante impolida, preciso frisar) que, naquela lista, faltavam os documentários de Adam Curtis, em particular o All Watched Over by Machines of Loving Grace.

Link YouTube | trailer de All Watched Over by Machines of Loving Grace

Aquelas recomendações deveriam, na verdade, mais sinceramente ser intituladas “documentários imperdíveis de esquerda”, mas isso apenas polarizaria ainda mais um texto já bastante polarizado.

Além do mais, quem precisaria ver aqueles documentários, particularmente os mais bem ajuizados, seria exatamente quem lhes faz oposição (não é bem verdade: a esquerda no Brasil é quase tão desinformada, então… todos precisariam ver).

Mas o leitor talvez não tenha reparado que a posição política de Adam Curtis é difícil precisar pelo conteúdo daquele documentário em particular, e que aquele texto era escancaradamente panfletário. Porém, num sentido o leitor está certo: seguindo apenas o título (o que, segundo pegadinha de primeiro de abril da NPR, é tudo que a grande parte dos comentadores leem), de fato os documentários dele mais precisamente se encaixam entre os “que precisamos assistir para entender o mundo hoje”.

Já sigo me desmentindo: em particular o excelente All Watched Over by Machines of Loving Grace, uma exploração crítica da penetração ideológica do conceito da máquina em três episódios de uma hora sobre economia, ecologia e o conceito de autodeterminação, não exatamente nos faz entender muita coisa, senão abre uma caixinha de pandora de interconexões inusitadas que provavelmente deixam qualquer um refletindo sobre aspectos distópicos da cultura como numa bad trip do pior ácido.

Mas isso é um elogio.

Podemos falar o que quisermos de Curtis, e a minha crítica central é que, de fato (em particular o AWOBMOLG), é uma metralhadora giratória que apresenta de forma extremamente bem arrazoada, e emocionalmente engajadora -- sem falar no extremo hipsterismo da sinergia entre música e stock footage (velharias do arquivo da BBC) -- argumentos sem “início nem fim”.

Explico. Entramos na linha de raciocínio com nossos pontos de vista, que vão sendo fortalecidos ou destruídos pelo documentarista (algumas vezes mais de uma vez ao longo do episódio), mas, no fim, ficamos sem muito o que fazer com tudo aquilo, senão seguir refletindo.

O que soava extrema crítica, enfim, acaba parecendo um bom elogio meio irônico. Exatamente como, no fundo, vai acabar parecendo que estou fazendo nesse parágrafo. Afinal, essa indeterminação pós-moderna e irônica é algo que nós da Geração X (e aproximadas) aprendemos a amar.

"A armadilha: o que aconteceu com o nosso sonho de liberdade?". The Trap é um outro documentário do Adam Curtis, de 2007, que explora o conceito e definição de liberdade
"A armadilha: o que aconteceu com o nosso sonho de liberdade?"

Ou, no mínimo, amar e odiar – seguindo a isomorfia toda desse e daquele conteúdo, aliás.

Mas o interessante sobre o AWOBMOLG é que eu, como antilibertário, assisti ao primeiro episódio muito feliz com a crítica certeira ao absurdo ideológico por trás do sistema financeiro nos últimos quarenta ou cinquenta anos. Só para então ser verdadeiramente esmagado pela crítica, muito bem fundamentada, ao movimento ecológico e a esquerda hippie de forma geral no segundo episódio.

Se alguém me observasse assistindo essa segunda parte, talvez me visse gemer algumas vezes. Porque o pior não é ser atacado, mas o ser de surpresa, e com finesse, substância e lógica. O que é raro, ó, tão raro.

O terceiro episódio é talvez o mais interessante e ata os dois primeiros de uma forma impressionante. Com a singularidade em vista, com algoritmos determinando a economia, com a secularização da ética ora nos libertando, ora nos revelando engrenagens deterministas e sem vida interior real, nenhum conteúdo merece maior relevância do que esse documentário, em particular sua terceira parte.

E com essa obra-prima, Curtis não deixa absolutamente ninguém confortável com suas próprias posições. Meses ou anos depois de primeiro o assistirmos, o texto e as imagens ainda nos invadem e nos levam forçosamente à reflexão.

A BBC, como veículo de estado, e um estado com o maior histórico colonialista já visto, curiosamente persiste provocadora. E os limites da polarização liberal/conservador (que no mundo anglófilo emparedam, respectivamente, esquerda e direita) ficam confusos.

O irritante Jonathan Meades e sua supervalorização do artista e da arte acima de tudo, visando um escroto subtexto de valores antiambientalistas e quase — quase — descaradamente fascistas, em coisas como arquitetura e urbanização segue lado a lado com documentários um tanto mais objetivos, como a história da porcelana de Sevres, a new age astrofísica de Brian Cox, ou Waldemar Januszczak reabilitando o rococó como algo relevante. Mesmo a emocionalidade bombástica (e progressivamente menos irônica) de Louis Theroux não se compara a quase mais nada feito para a TV -- só quem chega perto, e fica a milhas de distância, é a PBS.

Mas Adam Curtis está em ainda outro patamar. Um dos cernes da contundente crítica ao capitalismo na BBC, e de crucial relevância para entendermos o século passado – e então podemos atar esse texto com o anterior em que recomendo 11 documentários – é justamente The Century of Self.

Neste documentário em quatro partes um tanto mais lineares, mas não menos hip ou menos bem argumentadas, Curtis examina como a indústria de Relações Públicas e Publicidade surgiram no século XX, a partir de um sobrinho de Freud. A teoria psicanalítica pasteurizada e aplicada às massas para produzir o hommis qua consumitor, o ser humano como engrenagem da ideologia.

Link YouTube | Trailer de Century of the Self

Evidenciados ali nosso tão prezado individualismo e nossa noção de liberdade de escolha como fruto de deliberada escultura por meio de ações publicitárias, apenas para nos vender miçangas brilhantes (cigarros, carros, smartphones -- marcas como estilos de vida) em troca de crescimento econômico, destruição ambiental e perda de valores mais efetivamente humanos e reais.

Deu no que deu.

Estamos aí, ainda lidando com esse lixo todo, uma sociedade de hoarders sem contato direto com qualquer forma de sentido, apenas pseudo-aleatoriamente consumindo e usufruindo.

Pois bem, então aqui me desculpo pela não inclusão do The Century of Self nas recomendações anteriores, e já apresento o AWOBMOLG como também algo imperdível.

Aproveitem.


publicado em 12 de Abril de 2014, 10:47
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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