A São Paulo sem luz (e sem lei) de Apagão

O Rob Gordon, que escreve os quadrinhos "Terapia", fala da HQ nacional "Apagão", do Raphael Fernandes

Talvez você não saiba, mas os quadrinhos brasileiros vivem uma grande fase, especialmente na cena independente. Isso se deve a dois motivos: o primeiro é uma geração extremamente talentosa que vem dando novo fôlego à produção nacional, com obras dos mais diversos gêneros e que vêm ganhando cada vez mais espaço.

O segundo é o crescimento do sistema de crowdfunding, que se tornou a principal ferramenta para que essas obras vejam a luz do dia. Se a Internet sempre foi uma excelente vitrine de trabalhos independentes – e isso vale para todas as mídias – ultimamente o crowdfunding vem incentivando isso de forma ainda mais intensa, possibilitando a realização de obras ainda mais ambiciosas com o apoio dos leitores.

E foi assim que surgiu Apagão, escrito por Raphael Fernandes (editor da revista MAD e criador de trabalhos como o policial “Ditadura no Ar”) e desenhado por Camaleão (também da MAD e premiado em diversos salões de humor) e cuja história se situa numa São Paulo de pesadelos: sem luz há meses, a maior metrópole do país se tornou terra de ninguém, com bairros inteiros controlados por gangues que vivem em guerra umas com as outras – e todas em guerra com uma polícia que não sabe como agir neste cenário.

Enquanto isso, as pessoas comuns lutam para sobreviver a cada dia neste cenário, sem saber se o mesmo está acontecendo em outras partes do país (ou do planeta?). E é justamente uma delas, Dori, que atua como personagem central da trama. Dono de um blog que fazia sucesso quando a cidade ainda possuía energia elétrica, ele precisa sair do seu esconderijo e ir às ruas salvar sua irmã sequestrada.

Neste meio tempo, ele acaba sendo “adotado” pela gangue Macacos Urbanos, cujos membros usam skates para patrulhar seu território e enfrentam seus oponentes com capoeira, e percebe que seu papel dentro da São Paulo às escuras é maior que desconfiava – mas também descobre que precisará enfrentar um inimigo mais poderoso que imagina.

Assim, temos uma trama clássica e recheada de cenas de ação – a HQ tem pelo menos três cenas de pancadaria que não devem em nada às das grandes editoras, e todas muito bem contextualizadas – que é contada de uma forma moderna e totalmente familiar aos brasileiros, sobretudo a quem conhece minimamente o centro de São Paulo.

Mas o grande charme de Apagão não está em suas localizações geográficas, e sim em suas referências à cultura pop, que aproximam a trama não apenas do mundo real, mas do público brasileiro – as páginas de abertura, citando a letra de "Bichos Escrotos", dos Titãs, já deixam claro o que público vai encontrar pela frente. São referências que vão de videogames e internet até assuntos mais sérios, como o papel da polícia e religião.

Mas talvez o ponto forte do roteiro esteja em sua linguagem. É um prazer ler uma história que poderia facilmente se passar em Nova York ou Londres e começar a perceber que os diálogos não foram traduzidos de outro idioma, mas sim pensados originalmente em português. É algo que pode parecer um detalhe até pequeno, mas, no caso de Apagão, em que a forma que cada personagem se expressa serve para reforçar sua personalidade, é algo que faz diferença - ainda sobre a personalidade dos personagens centrais, a HQ traz também reportagens e trechos de diários que enriquecem ainda mais o passado dos personagens centrais.

Este roteiro, ousado e violento na medida certa – e que deixa o gancho para sua continuação – é extremamente valorizado pelo lápis de Camaleão. Se, à primeira vista, a arte chama a atenção pelo dinamismo das cenas de ação, é quando se presta atenção nos detalhes que ela cresce ainda mais. A São Paulo mostrada em Apagão é uma cidade suja e sombria, e cada quadro parece ser feito para reforçar justamente o perigo que existe no próximo quarteirão ou dobrando a esquina – especialmente se você estiver andando por um bairro dominado por alguma gangue.

É uma obra que merece ser conhecida e que – justamente por isso – foi além do Catarse, site de crowdfunding onde foi financiada. O projeto foi abraçado pela Editora Draco e será lançado nas principais livrarias e comic shops do país, numa edição luxuosa que aumenta ainda mais sua qualidade, por R$ 39,90.

E uma das oportunidades de conhecer o trabalho é no evento que marcará o lançamento de Apagão, marcado para este sábado, a partir das 16h, na Geek Store do Conjunto Nacional (na ocasião, serão apresentados outros lançamentos da editora). Afinal, nada mais justo que uma HQ como Apagão, com sua trama que eleva São Paulo quase ao nível de um personagem, ganhe um evento num dos pontos mais famosos da cidade.

Mas corra antes que as luzes da rua se apaguem.


publicado em 24 de Abril de 2015, 10:43
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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