A propaganda da liberdade | WTF #53

“Sei o que é melhor para mim, mas não consigo agir de acordo.” Esse é um problema clássico da filosofia ética: a incontinência, ou acrasia. Alguns filósofos na antiguidade sequer aceitavam a existência real de tal problema, uma vez que ele parece surgir em contradição à ideia de que somos racionais. “Ninguém age de forma a prejudicar a si mesmo”. Mesmo assim, a evidência é que se trata de uma situação bastante corriqueira e que aflige basicamente a todos nós.

O cinzeiro d'Os Malvados

Porém, Aristóteles, por exemplo, reconhecia o problema. No livro VII da Ética à Nicômaco não considerava a acrasia um vício, mas conhecer a virtude e não ter se habituado a ela a ponto de conseguir enfrentar as paixões.

O cristianismo nos trouxe outros dilemas. Com um criador que é perfeitamente bom, fica difícil entender o surgimento do mal no mundo, e então é que surge a noção de liberdade, ou livre-arbítrio, que é mais ou menos como concebemos as noções modernas de deliberação. Criamos o mal no mundo porque somos livres para agir contra a vontade de Deus, e foi ele nos concedeu essa prerrogativa, que é um dos sentidos de “criado à imagem e semelhança” – isto é, somos idênticos a ele acima de tudo em termos de sua mente livre, deliberativa.

Porém, enfrentando o mesmo problema dos filósofos da antiguidade, é fácil perceber que não agimos sempre tão livremente ou deliberativamente quanto podemos desejar. No cristianismo então surge a noção de tentação, que é um estado de aprisionamento a más influências, à vontade de outros. Ao comermos o fruto da discriminação entre o bem e o mal, não o fizemos só porque podíamos desobedecer a Deus, porque ele havia concedido essa prerrogativa, mas porque ouvimos a conversa da Serpente.

O problema parece ser que, nesses sistemas de pensamento tão influentes, tanto a racionalidade quanto a liberdade, que respondiam a exigências próprias naqueles sistemas (a própria filosofia, que depende da racionalidade, a existência de um criador benévolo), foram um tanto exageradas.

E o padrão do exagero segue hoje, nas ideologias dominantes do capitalismo e do secularismo humanista. Isto é, seja no discurso imperialista que vende armas para impor “liberdade” a territórios explorados, seja na racionalidade exigida dos e “prevista” nos agentes das teorias econômicas vigentes, ou nas questões do banimento da publicidade infantil, ou quaisquer regulações quanto à publicidade – rapidamente oscila-se entre condenar o paternalismo estatal e o abraçar como libertador.

O fato é que enquanto a economia opera sob a ideologia de que o mercado é bom por que a informação é plena e os agentes são totalmente racionais, maximizando o benefício médio de todos os participantes, a publicidade opera sob a óbvia crença de que não é meramente informativa, mas explora a fragilidade das paixões. Quando o mercado vai mal, então é porque elementos agiram de forma irracional, da mesma forma que quando a publicidade está sendo regulada os consumidores são seres livres, plenamente deliberativos, e descolados de suas paixões.

Parece haver um descompasso entre os interesses e o discurso.

Na esfera pessoal essa confusão ideológica se expressa de várias formas. Ficamos confusos quando não obedecemos nosso melhor julgamento: comemos o que não devíamos, etc. Afinal, a publicidade e os filmes estadunidenses nos convenceram tão fortemente de que somos livres para viver como quisermos (i.e., comprar o que quisermos), por que cargas d’água seguimos comprando justamente quindim?

Em certo sentido, não importa quantas evidências do contrário tenhamos, vivemos sob a ilusão cotidiana de que temos deliberação total sob nossas ações, e que somos seres extremamente racionais, bastante coerentes em nossa visão de mundo. Esse tipo de engano é bom para as grandes corporações, que justamente vivem de minerar a acrasia dos consumidores, e também para os estados pacificarem seus rebanhos.

O fato é que somos livres e racionais em potência. Temos o potencial de desenvolver essas qualidades, talvez até um nível completo, mas nosso estado atual é de sermos vítimas costumeiras de “tentações”, e todo tipo de engano externo ou interno. Sim, por que se os outros nos enganam, corriqueiramente, sobre o que vai ser melhor para nós, nós mesmos também nos enganamos frequentemente.

E a resposta é aristotélica: precisamos nos habituar com a virtude. Querer ou achar não basta, é preciso inclinar toda a vida na direção do que é bom, o tempo todo, com um esforço consciente e constante.

A liberdade não é, a não ser como um direito ou essência, uma característica inata. Ela precisa ser cultivada. A palavra incontinência, usada nos textos clássicos com relação à vontade, hoje nos lembra mais um bebê que está sendo treinado para usar a privada. Mas a metáfora é válida. Precisamos obter domínio sobre nós mesmos, isso não é dado. Precisamos aprender a controlar o esfíncter moral.

E isso não é só uma questão de treinamento militar, forçoso, é também ser paciente e bondoso consigo mesmo quando se falhar, e isso vai seguir acontecendo inúmeras vezes. Mas é uma questão de ser implacável quanto ao autoengano de se achar naturalmente livre, fazendo qualquer merda.

O mesmo com a racionalidade: pensar direito e saber distinguir boa informação de informação ruim não é dado. Isso é algo que se desenvolve por meio da educação. É desafortunado que a educação hoje não cumpra esse papel, mas igualmente é responsabilidade de cada um se tornar uma pessoa deliberativa, capaz de justificar as decisões e de entender friamente por que falhou quando falhou.

Mas não é nem um pouco assim no discurso público. Quando alguém vier dizer que você é livre e racional, normalmente essa pessoa quer lhe aplicar um golpe. Afinal de contas, parte do processo de se tornar essas coisas é dificilmente se achar em posse plena delas.

E aqui nós temos toda a propaganda política do libertarianismo, que quer que o governo não proteja os trouxas, para maximizar a eficiência por meio de processos naturais de competição. Isso infelizmente maximiza a desinformação sobre o quão pouco livres somos, e não porque algum governo nos tolha a liberdade, mas porque não desenvolvemos as qualidades que permitiriam a deliberação efetiva. E o problema de um sistema assim é que ele tende naturalmente a criar forças que minimizem a deliberação nos competidores ou consumidores. Quem tem mais dinheiro, tem mais liberdade, e se puder, deixa os outros desinformados e não deliberativos.

É mais ou menos o que já acontece. Afinal de contas, só quando terminamos de comer o quindim é que algumas vezes lembramos que, ops, talvez não tenha sido um ato totalmente livre. E o pior é que o autoengano é tão grande que nos convencemos, posteriormente, de que sim, comer o que se quer quando se quer, isso sim é liberdade.

Não é por analogia fraca que na mitologia hebraica uma serpente nos convenceu de sermos livres. Normalmente onde se lê “liberdade” deve-se ler “aprisionamento”. 


publicado em 22 de Janeiro de 2015, 00:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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