— Senhor?
— Pois não?
— Adão na linha sete.
— Pode passar.
— Sim, senhor.
— Alô?
— Tudo. E com o Senhor?
— Tudo bem, também. Diga.
— Estou precisando de uma ajudinha aqui. Preciso que o Senhor me diga como a Eva foi criada.
— Como assim?
— Ah, preciso também de uma cópia do regulamento do Paraíso.
— Oi? Cópia de quê?
— Uma cópia do regulamento do Paraíso e informações sobre a criação da Eva. Se possível, com relatórios e testemunhas. Umas duas já devem bastar.
— Mas para que você precisa disso?
— Para esfregar na cara daquela doninha.
— Esfregar na cara de quem?
— Daquela doninha que está ameaçando entrar na justiça. O Senhor não está sabendo?
— Não, Adão. Final de ano é uma baita correria aqui. O que está havendo?
— Uma doninha está espalhando por aí que eu não posso mais cuidar do Paraíso porque a Eva foi criada ilegalmente.
— Como assim, criada ilegalmente?
— Ela diz que a Eva foi criada a partir de uma costela, e isso seria contra o regulamento do Paraíso, que diz que todos os animais precisam ser criados do nada. Por causa disso, a doninha falou que eu não poderia mais cuidar do Paraíso, e teria que ocupar o mesmo nível dos outros animais. Ela está dizendo que eu devo ser relaxado.
— Relaxado?
— Foi o que ela disse.
— Não seria rebaixado?
— Hum... É. Pode ser. Acho que sim. Mas, enfim, preciso provar que ela está errada e que isso é invenção. Eva sendo criada a partir de uma costela? Que absurdo!
— Bem...
— O Senhor não concorda? Poderiam ao menos ter inventado uma história mais fácil de acreditar.
— Bom...
— Enfim, preciso da Sua ajuda para acabar com isso.
— A Eva já está sabendo disso?
— Sim.
— O que ela falou?
— Olha, falar, mesmo, ela não falou muita coisa. O Senhor conhece a Eva.
— Sim. Aposto que ela preferiu pegar a doninha pelo pescoço.
— Isso. Começou a gritar que ia matar a doninha. Eu separei os dois, mas foi por pouco. A doninha já estava ficando roxa.
— Imagino.
— Agora a Eva nem tem saído mais da caverna esses dias, por causa disso.
— Sorte da doninha.
— Com certeza. Mas o problema é que agora não é mais só a doninha. Depois da doninha, parece que isso virou febre aqui embaixo.
— Como assim?
— Bem, a notícia de que a doninha vai entrar na justiça se espalhou. Todos os animais agora querem entrar na justiça para conseguir alguma coisa.
— Todos?
— Bom, um monte deles. As girafas já avisaram que se a doninha ganhar a causa, elas vão entrar na justiça pedindo que os tigres sejam expulsos do Paraíso, alegando que a violência deles é irregular. Os tigres vão entrar na justiça alegando que a velocidade das zebras certamente é irregular e fere o regulamento do Paraíso.
— Que bagunça.
— Mas não acabou. Os peixes querem entrar na justiça alegando que o fato deles não respirarem fora da água como os outros animais também é irregular. As gaivotas concordam com os peixes.
— Como assim?
— As gaivotas acham difícil ter que voar sobre o lago atrás dos peixes, que ficam embaixo da água. Então, elas planejavam entrar com uma ação para obrigar os peixes a saírem da água, alegando que ficar só dentro do lado é irregular. Mas aí elas ficaram sabendo que os peixes já vão entrar na justiça para isso, e decidiram esperar para ver o que vai acontecer.
— Tudo isso nos últimos dias?
— Sim. E todos os animais estão entrando na justiça contra o otorrino.
— Ornitorrinco, Adão.
— Isso. Desculpe, eu não consigo aprender essa palavra. Ornitorrinco.
— Mas o que os animais estão alegando que o ornitorrinco fez de irregular?
— Bem, na verdade eles alegam que o bicho inteiro é irregular.
— Como assim?
— Bem, o Senhor precisa concordar que aquele animal é meio estranho. Cheio de pelos, com bico...
— Eu não vou mudar o ornitorrinco. Eu gosto dele assim.
— Enfim, otorrinos à parte, preciso de uma ajuda.
— Bom, mas quem começou com tudo isso foi a doninha. Se este caso for resolvido, acredito que os outros animais vão deixar tudo isso de lado.
— Eu acho difícil, porque agora ela tem o apoio dos macacos.
— O que os macacos têm a ver com essa história?
— Bem, teoricamente nada. Quando eles ouviram falar que a doninha iria entrar na justiça, eles nem deram atenção. Mas logo eles ficaram sabendo que isso poderia fazer com que eu fosse rebuscado, e...
— Rebaixado.
— Isso. Rebaixado. E aí claro que eles compraram a ideia. Criaram um movimento chamado Todos Junto com a Doninha e estão espalhando folhas de bananeiras com esta inscrição e o nome de todos os animais. É quase uma campanha.
— Como assim?
— Colocaram uma ali no lago com a inscrição “Peixes — Todos Juntos com a Doninha”. Outra ali no alto de uma montanha escrita “Aves
— Todos Juntos com a Doninha”. Tem um monte dessas folhas por aí. Ali onde eles ficam, na floresta, foi onde eles colocaram a primeira, que diz “Símios — Todos Juntos com a Doninha”.
— Entendi.
— Já vieram me falar aqui, que eles estavam até mesmo tentando bolar um jeito de colocar uma no céu, escrita “Anjos — Todos Juntos com a Doninha”.
— Mesmo?
— Sim. Não sei por que não colocam “Todos Contra o Adão” de uma vez. Ao menos, seria mais sincero.
— Adão, esqueça isso. Vamos pensar na justiça. Vamos partir do princípio que a doninha estivesse certa e que Eva tivesse sido criada de forma irregular. O certo seria, sim, você ser rebaixado e perder seu emprego.
— Como assim? Então é verdade o negócio da costela?
— Adão...
— Porque se for verdade, a Eva vai me matar. E vai sobrar para o Senhor também, aposto.
— Esqueça. Eu vou explicar de outra forma. Vamos dizer que você fez algo errado. Neste caso, você deveria ser punido. Isso seria justiça. Entendeu?
— Entendi. Então, por exemplo, se eu tivesse comido a maçã...
— Não, aí é diferente. Se você tivesse encostado um dedo na maçã, você precisaria ser punido não por causa de justiça, mas porque seria um completo imbecil, já que Eu falei 314 vezes que não é para mexer ali.
— Calma, foi apenas um exemplo.
— Sim, mas foi um exemplo bem infeliz.
— Certo, vou tentar outro. Se eu tivesse derrubado um coqueiro. Esse serve?
— Serve. É um exemplo melhor. Aí você seria punido porque errou. Agora, a justiça está aí justamente para isso: punir o erro de quem comete. Ela não pode ser usada para alguém que não tem nada a ver com o assunto se aproveitar disso, e tentar e ganhar algo com esta punição. Se a doninha estiver fazendo apenas para conseguir seu cargo...
— Não... Eu já perguntei a ela, e ela disse que não quer meu cargo. Ela disse apenas que quer o que ela acha que é correto.
— Certo. Então ela está no direito dela. Eu não vou puni-la.
— Mas e os macacos?
— Você acha que eles querem se aproveitar disso para tomar seu cargo?
— Bem, assim que eles souberam que isso estava acontecendo, começaram a se estapear entre eles para decidir quem vai ficar no meu lugar e quem vai ter a honra de me expulsar do Paraíso. Então... Acho que sim, né?
— Sim. Acho que sim.
— E o pior é que eles já se apresentaram como voluntários para realizar o julgamento. Já falaram com a advogada da Doninha e ela aceitou.
— Quem é a advogada?
— É a serpente.
— Eu imaginei.
— Na verdade, ela será a advogada não apenas da doninha, mas de todos os outros animais, em todos os outros julgamentos.
— Por que Eu não estou surpreso?
— Talvez porque o Senhor seja onisciente.
— Foi só uma expressão, Adão.
— Ah.
— Mas você tem razão. Precisamos dar um jeito nisso.
— Então, se o Senhor me emprestar o regulamento do Paraíso...
— Não há um regulamento do Paraíso escrito.
— Como assim? O Paraíso não tem regras?
— Adão?
— Oi.
— O regulamento do Paraíso Sou Eu.
— Ah.
— É por isso que isso deve acabar. Porque se eu tiver que escrever um regulamento só por causa disso, vai gerar apenas mais confusão. Eu preciso resolver isso de outro jeito.
— Tem razão. Eu sugiro um punhado de anjos.
— Como?
— Anjos. O Senhor sabe. Espadas de fogo, fúria divina, raios e mais raios caindo sobre a doninha...
— Não, Adão. Eu não vou punir a doninha. Eu já disse que ela não tem culpa. Eu mesmo vou ter que descer até aí e falar pessoalmente com o responsável por isso.
— Quem?
— Adão, use um pouco sua cabeça. Qual é o único animal que está envolvido em todos os processos e julgamentos?
— A serpente?
— Sim. E você tem alguma dúvida de que foi ela quem convenceu a doninha a fazer isso?
— Bem, agora que o Senhor falou, até que faz sentido, mesmo.
— Deixe comigo que eu vou resolver.
— E os macacos?
— Eu cuidarei deles também.
— Obrigado.
— Pode ir cuidar do Paraíso tranquilamente. E diga a Eva para não se preocupar.
— Certo. Então, mas antes que o Senhor desligue, aquela história da costela...
— Adão?
— Oi.
— Adeus.
— É... tchau.
Após desligar o telefone, Deus desceu ao Paraíso e foi direto falar com a serpente.
No início, o animal alegou que estava apenas fazendo justiça e agindo no interesse dos outros animais, mas logo acabou entregando o jogo: tudo fazia parte de uma armação que visava expulsar Adão do Paraíso. Assim, ela colocaria outro animal em seu lugar e seria muito mais fácil convencer alguém a pegar uma das maçãs.
Com medo de Deus, a serpente — que era a única criatura que já havia testemunhado de perto a ira Dele, e não queria passar por aquilo novamente — também explicou a participação dos macacos. Eles haviam concordado em apoiar o rebaixamento de Adão e, no futuro, quando alguém fosse comer a maçã, os macacos receberiam exclusividade nos direitos de exibição deste evento para todo o Paraíso, além da autorização para negociar diretamente com possíveis patrocinadores.
Deus obrigou a serpente a retirar todos os processos. Ela aceitou e aproveitou para dizer que nada daquilo era pessoal e que era apenas o trabalho dela. Mas Deus exigiu também o nome de todas as espécies de macacos que haviam participado daquele movimento a favor do processo.
A serpente entregou a lista e Deus voltou com os nomes para o Paraíso.
Imediatamente, chamou um anjo e entregou a relação de nomes, pedindo que a lista fosse arquivada o mais rápido possível junto com todos os outros animais passíveis de extinção por mau comportamento.
Com a lista em mãos, o anjo foi até a sala de arquivo, onde foi atendido por outro anjo, encarregado do departamento.
— Bom dia. Preciso arquivar os animais desta relação.
— Como se chama a relação?
— Símios — Todos Juntos com a Doninha.
— Aqui nós trabalhamos apenas com siglas para facilitar. Coloque STJD.
— Certo. E onde eu coloco a pasta?
— Por que eles estão sendo arquivados? Qual o pecado deles?
— Não sei ao certo. Acho que pode ser “Mentira”.
— Então é ali naquele arquivo. Ali é a compilação dos bichos falsos.
— Este aqui?
— Isso.
— Em qual gaveta eu coloco?
— Na terceira. Está escrito aí.
— Aqui está escrito CBF.
— Isso. Compilação dos Bichos Falsos. Aqui é tudo por sigla, já falei.
publicado em 20 de Dezembro de 2013, 22:00