A pior desculpa da humanidade: "não tive escolha"

Juan diz que admira meu estilo de vida, mais livre e talz. Ele, coitado, trabalha doze horas por dia numa agência de publicidade e não tem nem dinheiro nem tempo pra nada. Ó vida, ó azar.

E eu digo:

 

"Você ganha 150 mil dólares por ano, Juan. Mais bônus. Como pode não ter dinheiro pra nada? A minha bolsa é de 18 mil, eu vou pro Brasil de seis em seis meses e troco de computador a cada dois anos."

Aí começa a lista. Ele tem que pagar a hipoteca da casa, escola particular pros dois filhos ("porque escola pública em Los Angeles é barra pesada, né?, não dá!"), o lease dos dois jipões da família, seguro de vida, da casa e dos carros, gasolina, ufa, "não sobra nada, Alexandre!"

 

"The first born" de Frederick William Elwell

Eu fico ouvindo e penso: temos a mesma idade, estudamos na mesma escola, somos da mesma classe social, moramos no mesmo país estrangeiro, tivemos praticamente as mesmas escolhas na vida.

E eu não tenho nenhuma dessas despesas.

* * *

Juliana ganha R$1.800 por mês como professora em São Paulo. Suas finanças estão um caos: acabou de se separar e ainda está se adaptando a viver somente com seu salário. As dívidas no cheque especial e no cartão de crédito estão astronômicas. Outro dia, ficou deprê, foi no salão e fez o tratamento completo. Demorou dias pra me contar o custo da brincadeira, porque sabia o que eu iria dizer:

 

"Poooorra, 400 reais?! Isso é mais de um quarto da sua renda! E você não tem dinheiro sobrando nenhum! Suas despesas já são maiores do que a sua renda - sem contar a dívida!"

E ela:

 

"Ai, Alex. Você não entende! Eu precisava disso!"

Naturalmente, nossas definições de precisar são bem diferentes.

* * *

Por fim, Zeca, outro colega da minha escola de rico, ainda mora com os pais na mesma cobertura em Ipanema, no mesmíssimo quarto onde jogávamos War há quase trinta anos, e trabalha num banco privado, onde deve ganhar uma fortuna. Entretanto, assim como Juan e Juliana, o pobrezinho também não tem dinheiro pra nada:

 

"Poxa, Alex, meu carro pifou duas vezes esse ano, só de conserto foi quase duzentos mil, e eu ainda não consegui ganhar nenhuma corrida, então foi só prejuízo. Pra não falar da casa de Búzios, instalei painéis solares no telhado todo, vai economizar muita energia no longo prazo mas, pô, esse ano eu quebrei!"

* * *

A maioria dos leitores (eu sei, eu sei, você foi a exceção) entendeu perfeitamente o drama de Juan; se é mulher, simpatizou com Juliana ("vocês homens não entendem, Alex, mas nossa sociedade patriarcal falocêntrica exige que as mulheres sejam sempre lindas!"); e provavelmente achou que Zeca é um playboyzinho mimado.

Mas é puro preconceito seu, amigo leitor. Os três estão exatamente na mesmíssima situação.

 

"Fatigada" de Eliseu Visconti

A verdade é que precisamos, precisamos mesmo, de pouquíssima coisa: comida, bebida e abrigo - e roupas, para não sermos presos por atentado ao pudor. O resto são escolhas. Você escolhe gastar R$200 na livraria por mês e não no salão porque você gosta mais de ler do que de ficar com o cabelo feito. Escolhas.

A ilusão de ótica é achar que as despesas de Juan são necessidades enquanto as de Zeca são escolhas - e fúteis, ainda por cima! Mas isso é moralismo, amigo leitor. O Zeca ganhou seu dinheiro trabalhando tanto quanto o Juan: se quiser enterrar tudo no seu carro de corrida (que, teoricamente, lhe dá tantas alegrias quanto os filhos dão a Juan) é escolha dele.

A ilusão de ótica é não ver que as despesas de Juan, que hoje parecem tão necessárias (como não colocar os filhos na escola particular, meu deus?), são fruto de escolhas que ele fez conscientemente já sabendo qual seria seu custo, já sabendo que não teria volta.

* * *

 

"Você é um grandecíssimo moralista, Alex! Parece que só as suas escolhas foram acertadas!"

Vira esse dedo pra lá, leitor chato. Não falei nada disso. O texto é amoralista.

Hoje em dia, a maioria dos meus amigos na casa dos trinta tem súbitas crises de liberdade: um belo dia, acordam e se sentem sufocados pela vida que levam. Inevitavelmente, ligam pra mim, dizem que invejam minha liberdade (que é um outro nome pra solidão) e contam as misérias de suas hipotecas, dívidas e leasings. O horror, o horror!

E quando contam a histórias de suas vidas, de como chegaram nessa ó, terrível prisão, "ai, Alex, o que aconteceu com os nossos sonhos de infância?", é sempre como se não tivessem tido nenhuma escolha na vida, como se tivessem somente seguido o caminho que era esperado, feito as opções que achavam que deveriam ser feitas, verdadeiros autômatos pós-modernos.

Pena que não é verdade: e eles me ligam justamente porque eu sou a prova viva disso. Reparem, não estou dizendo que minhas escolhas foram acertadas ou não. Mas o simples fato de eu ter seguido por outro caminho mostra que isso era possível, que a vida que levam não é um destino pré-estabelecido, mas fruto das escolhas que livremente tomaram. Ninguém obriga ninguém a ter emprego em tempo integral, se endividar, comprar casa, casar, ter filhos. Pelo menos, não na nossa classe social.

Juan não acordou subitamente cercado de mulher e filhos, hipotecas e leasings: ele está lá porque quis.


publicado em 25 de Agosto de 2012, 21:02
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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