“A outra final” (Uma história fascinante sobre futebol)

Em 30 de junho de 2002, praticamente todos os olhos do mundo voltavam-se para a cidade japonesa de Yokohama. Naquele dia, Brasil e Alemanha fariam a final da Copa do Mundo de 2002, e um certo Ronaldo provaria ao mundo que era brasileiro e não desistia nunca, um grande exemplo de recuperação e perseverança. Mas ali mesmo na Ásia, na manhã daquele dia, ocorreu um evento que praticamente não chamou a atenção de ninguém, num pequeno país montanhoso...

Enquanto os dois melhores do mundo decidiriam quem ficaria com a coroa, acontecia outra decisão, bem menos glamourosa. Que foi batizada de “A outra final”. Uma história sobre como o futebol pode unir os povos globalmente.

A história começa após as eliminatórias européias para a Copa de 2002. A tradicional seleção holandesa não conseguira sua classificação para o Mundial, decepcionando seus fãs. Um cineasta holandês chamado Johan Kramer, triste por não poder acompanhar sua seleção na Copa, teve uma idéia: E se as duas piores seleções do mundo se enfrentassem numa decisão própria de Copa? Nascia ai a produção de um documentário sobre “A outra final”, o jogo entre as duas piores seleções do mundo.

Kramer então consultou o ranking da FIFA, e foi direto ao final. Lá constava:

202 – Butão

203 – Montserrat

A idéia não poderia reunir países mais diferentes.

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BUTÃO

Butão é um pequeno país asiático, situado no meio do Himalaia, entre a Índia e a China. Tem como algumas de suas características a forte influência do budismo, o fato de ter sido um dos últimos países a abrir as portas para o mundo (A televisão só chegou ao Butão em 1999), e ser o único país no mundo onde a qualidade de vida do povo é medida pelo chamado Índice nacional de Felicidade. Muito do isolamento dos butaneses deve-se ao grande cuidado na preservação de suas tradições.

O esporte nacional do Butão é o arco e flecha. A Federação Butanesa existe desde 1970, mas só foi oficializada em 1983. Filiou-se à FIFA em 2000, e no mesmo ano, sofreu sua pior derrota, 20 a zero para a “poderosa” seleção do Kuwait.

Num país cravado no Himalaia como o Butão, a construção de estádios requer tempo e dinheiro, e a falta de locais para a prática do esporte é um problema crônico. Os campos tem que ser escavados nas encostas das montanhas. Uma trabalheira sem tamanho, que só a paixão pelo esporte pode superar.

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MONTSERRAT

Montserrat é uma das centenas de ilhas caribenhas. Uma vez conhecida como “A esmeralda do Caribe”, tem sua história marcada por um triste fato. Erupções vulcânicas.

Desde 1995, o vulcão Soufriere Hills entrou em atividade ininterrupta. A capital, Plymouth, ficou soterrada em 12 metros de cinzas, e a metade sul da ilha permanece inabitável desde então. A população que já era pequena em 1994 (13000 habitantes), começou a se expatriar (Atualmente, todos os cidadãos de Montserrat tem cidadania britânica garantida), e hoje, na parte habitável da ilha, restam 4800 habitantes. Uma das cenas mais emocionantes do documentário são as imagens do antigo estádio nacional de Montserrat, totalmente destruído e recoberto por cinzas.

Passando para o lado futebolístico, a coisa fica pior, pois o esporte favorito é o cricket. E com todas essas dificuldades, após 1994, a seleção nacional teve pouquíssima atividade. Na época do convite para o jogo contra Butão, nem uma base de time formado havia, num país que além da redução forçada do espaço para possível construção de campos, possuía apenas 150 jogadores amadores, alguns profissionais, e apenas 5 times no Campeonato Nacional. A seleção incluía policiais e até um membro do Parlamento.

Curiosidade: A canção “Hot hot hot”, que animava um antigo programa de auditório do Silvio Santos aqui no Brasil, é uma espécie de tema nacional em Montserrat.

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ORGANIZAÇÃO DO JOGO

Kramer solicitou autorização da FIFA e enviou convites para as duas federações. Provavelmente foi a primeira vez que um país ouviu falar do outro, culturas mais que distintas e um mundo inteiro de distância. Ficou acertado que como o time butanês estava á frente do ranking, seria o mandante. Isto acabou significando um certo pesadelo para o time de Montserrat.

O governo e a federação local hesitaram em aceitar o convite, porém acabaram capitulando pela oportunidade de um marketing positivo. Pois para um país que só foi notícia no mundo por causa de erupções vulcânicas catastróficas, aquele jogo em pleno dia de final de Copa, seria uma bênção.

A viagem durou exatos 6 dias. De Montserrat para Antigua, dali para St Maarten, então para Curaçao (todas no Caribe), para Amsterdam (Holanda), para Bangkok (Tailândia), Calcutá (Índia) e finalmente Paro (Butão). De Paro, um ônibus os levou para Timfu, a capital e local do jogo.

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Tudo certo? Nada disso, além de todo o desgaste da viagem, o time ainda teve 7 jogadores com problemas relativos a altitude (Timfu fica a 2500m) e disenterias. Depois os brasileiros reclamam de jogar na Bolívia. Isso não impediu os jogadores de Montserrat de fazer turismo. Por onde andavam, eram seguidos por multidões, e pasmem, até distribuíam autógrafos. Até uma festa com karaokê entre os jogadores de ambas seleções foi organizada. Foi assim que os butaneses conheceram o “Hot hot hot”.

Inacreditavelmente, o técnico da seleção butanesa havia morrido. E Paul Morris, técnico de Montserrat, pedira demissão. Ambos fatos ocorridos no mesmo dia. Os times jogariam praticamente sem treinador, ou alguém improvisado. Mas a conferência de imprensa pré-jogo simplesmente foi a maior já ocorrida em terras butanesas.

O local do jogo era o Estádio Changlimithang, que naquele dia abrigou 20000 pessoas, incluindo o monarca butanês, que dizem, foi um grande goleiro. Ao invés de placas de publicidade nas laterais, como na final “rica”, haviam faixas com dizeres religiosos em dzongka (língua oficial do Butão). O ingresso, que na final rica chegava a 800 dólares, foi gratuito. Cachorros invadiam o campo, e isso aconteceu até durante a partida.

Uma forte chuva quase impediu a realização da partida. E após diversas cerimônias tradicionais da cultura budista, enfim, o juiz inglês Stephen Bennet, acostumado aos jogos da Premier League, deu o apito inicial.

O JOGO

A última coisa que se poderia exigir de um jogo entre Butão e Montserrat é o nível técnico, provavelmente a maioria das peladas aqui no Brasil dá de 10 a zero. Enfim, após dois ataques de Montserrat, Butão consegue um escanteio. Na cobrança, a zaga rebate para o alto, e o atacante Wangyel Dorji ganha no alto, cabeceando fraco. A bola bate num morrinho artilheiro (é correto falar “morrinho” no meio do Himalaia?) e engana o goleiro Cecil Lake (mas que foi frango, foi). 4 minutos de jogo, 1 x 0 Butão.

Assistir o vídeo do jogo é engraçado. Num lance, o goleiro Lake tenta sair com a bola, mas ao chutar, entrega no pé de um jogador butanês. Este, mesmo com apenas um zagueiro na frente, dá um peteleco na bola, praticamente passando para o zagueiro, sem o goleiro atrás. Patético. Mas vale a festa em si. O primeiro tempo termina 1 x 0.

Em meio a furadas, entradas duras e outros lances menos classificáveis, aos 12 minutos do segundo tempo, uma falta na entrada da área para o Butão, e novamente Wangyel Dorji cobra com perfeição. 2 x 0. No vídeo tape, nota-se que o goleiro de Montserrat definitivamente faltou à aula de como armar uma barreira. Ridículo.

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Nessa altura do campeonato, os jogadores de Montserrat já estavam com a língua para fora. Após um cachorro desfilar tranquilamente pelo campo, o time butanês avança pela ponta, a bola é cruzada para a área e Dinesh Chhetri, um jogador que usa uma bandana multicolorida, chuta de bico. 3 x 0 Butão. A torcida delira com a provável 1ª vitória internacional do país. Decorriam 30 minutos do segundo tempo.

E dois minutos depois, Wangyel Dorji, o Obina do Himalaia, chuta, a bola desvia num zagueiro e trai o goleiro Lake. 4 x 0, que seria o placar final.

Ao fim do jogo, uma grande festa dos jogadores de ambos os times. Uma taça partida ao meio foi entregue e erguida por ambos capitães, Wangyel Dorji e Charles Thompson, simbolizando o espírito esportivo. Todos se reuniram para danças típicas butanesas ainda no gramado. E seis horas depois, os dois times assistiam juntos à Brasil x Alemanha.

Fica aí o exemplo da união que o esporte pode trazer, unindo dois países com histórias e dramas tão diferentes, que jamais teriam ouvido falar um no outro, num elo de amizade eterna.

PS: Quem quiser assistir o documentário acesse https://br.youtube.com/user/tangpa . Os vídeos estão sob o título bhutan:football, em 8 partes. O jogo em si, está a partir do final da parte 6.


publicado em 09 de Dezembro de 2008, 14:35
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Mauricio Garcia

Flamenguista ortodoxo, toca bateria e ama cerveja e mulher (nessa ordem). Nas horas vagas, é médico e o nosso grande Dr. Health.


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