Meu pai não deixava nem eu olhar o violão dele de perto. O velho podia ser um beberrão que só fazia reclamar da comida da mamãe e me mandar baixar o volume da televisão, mas ele tocava bem pra caralho aquele violão.
Mamãe trabalhava fazendo faxina e acordava muito cedo. Já o papai, já pra lá de meio-dia. O velho não gostava da manhã. Dizia sempre que era feito jacaré, feito morcego, feito coruja, que brilhava os olhos mesmo era de noite. Eu odiava o meu pai.
Chamavam-no de “bamba” lá na vilinha onde a gente morava. Ele sentava-se de calças curtas e sem camisa na janela de casa e ficava olhando as mulheres que passavam apressadas para o trabalho. Assoviava e falava besteiras pra elas. Meu pai só trocava as mulheres que passavam pelo seu violão. Ele cruzava a perna de modo tranquilo, pegava o violão e começava dedilhar, baixinho. Ajustava algumas cordas desafinadas, pegava o cigarro do cinzeiro, dava outra tragada e voltava pro seu violão. Ele tinha um esmero único com aquele instrumento. Nem pra mamãe ele dava tanto carinho.
Ganhava dinheiro no bilhar da esquina, reduto preferido do velho. De tardezinha, um pouco antes de a mamãe chegar cansada da faxina, ele se empetecava todo e ia pro bar. Era um dos momentos interessantes que eu tinha com o meu pai. Ele saía do banho e falava das coisas do mundo pra mim. Falava sobre o samba, sobre o violão e sobre as mulheres. Enchia o pescoço de loção que a minha mamãe tinha trazido da casa de uma das madames em que ela trabalhava e cantarolava sorridente em frente ao espelho.
Eu acompanhava com os olhos cada movimento daquele corpo duro e moreno. Atentava-me aos caminhos que a mão dele fazia. Aqueles dedos grossos e desajeitados abotoando a camisa, puxando as calças, dando tapinhas no cabelo curto para tirar a umidade que ficara do banho. Aquelas mãos valiam mais que tudo na vida do meu pai. Eram aquelas mãos que tocavam o violão dele.
Eu espiava meu pai no bilhar de vez em quando. Ele parecia o imperador da birosca! Todos olhavam para o velho, ouviam as conversas dele, apertavam sua mão e pagavam bebidas pra ele. Havia dois momentos de intensa satisfação pro meu pai: quando uma mulata vinha sorrindo sentar no colo dele pra ganhar algum chamego nos quadris e quando o povo começava a pedir para ele tocar o violão. Ah... como ele se divertia brincando com as ancas de uma qualquer. Já ao violão, ele era estritamente fiel. Só tocava as cordas daquela marota e não havia cristo que o fazia tocar outro instrumento.
Eu tinha uma verdadeira repulsa do meu pai, um homem que passava a tarde toda de cara fechada, que não tinha um mínimo de cuidados com sua mulher e que só sorria quando estava longe da gente. Papai tocava a madrugada inteira, entre copinhos de aguardente e histórias da velha guarda, feliz. Eu queria era aquele pai pra mim. Eu queria ser aquele homem.
Teve um dia que eu acordei sozinho. Mamãe, como sempre, já tinha saído pro trabalho e meu pai estava sei-lá-onde. Estávamos em casa só eu, o quarto, a sala, o banheiro e o violão. Fiquei algumas horas na entrada de casa na tentativa de avistar meu velho subindo a ladeira, mas nada. Até que eu avistei o violão.
Aquele símbolo de tudo que era ruim na minha família começou a me seduzir. Fitei com receio aquelas cordas, aquelas curvas todas, aqueles riscos do tempo. Encostei uma das mãos e imagens começaram a pipocar na minha cabeça. A birosca de sempre, as pessoas de sempre, mas, em vez de visualizar o meu pai, eu me via lá dentro, fazendo a alegria das pessoas, recebendo tapas amigos nas costas e cachaça de graça. Fui tomado de um novo entusiasmo.
Não me cabia dentro de meu próprio contentamento quando me dei conta de que estava com o violão sacro do meu pai no meu colo. Eu não sabia tocar porra nenhuma, mas me via em meio a lindas melodias que seduziam tudo e todos que por perto estivessem. Parando de pensar, eu fui pra rua com o objeto lindo e malicioso. Andei alguns quarteirões e me sentei em uma calçada. Firulei algum barulho e não tirava os olhos daquela beldade. Meu mundo agora estava reduzido a mim e aquele violão. Sentia a vida correndo pelos meus bracinhos e abraçando aquele troço com todo ímpeto que era capaz. Queria ser chamado de bamba. Queria elogios, queria ganhar camisas e loção para encharcar meu pescoço. Era aquilo que eu queria.
Me fechei tanto em minhas fantasias que nem percebi a aproximação de alguém. Era uma mulher que veio e parou de frente comigo, fazendo com que sua sombra atrapalhasse o caminho dos meus pensamentos. Ela era nova e estava de vestido bem apertado e suava um pouco na testa. Uma moleca de menos de vinte anos que chamava uma atenção incrível. Subi meus olhos que acompanharam as curvas delicadas dos tornozelos dela, o brilho de suas canelas, a renda do vestido acariciando levemente seus joelhos, a base que apertava um quadril farto e afunilava em uma cinturinha que sustentava um colo formidável que escapava pelo decote daquela vestimenta feminina.
Ela tinha os cabelos presos e um sorriso estranho. Tinha também brincos enormes que tilintavam em um pescoço fino e alongado. Fiquei confuso com a respiração descompassada que tomou conta dos meu pulmões. Ela deu uma risadinha e perguntou se eu não era, por um acaso, o filho do bamba. Acenei afirmativamente com a cabeça e me mantive em silêncio. Maria era o nome dela. Disse que conhecia o meu pai e que eu tinha os olhos dele.
Aquela raiva voltou com o que ela achou ser um elogio. Baixei os olhos na mesma hora e bufei. Ela não entendeu. Falou mais um pouco do meu pai, do quão engraçado ele era, do quão cheiroso ele era. Eu continuei quieto, olhando para o fim da rua lá em cima. A moça então comentou do violão e disse que meu pai era o melhor sambista que ela conhecera. Disse, meio que rindo, que ninguém no mundo era melhor com os dedos do que o meu pai. Eu não entendi bem a graça.
De repente, ela tirou o violão da minha mão, colocou-o com cuidado na beira da calçada e, ainda falando, sentou-se no meu colo. Ela encostou o decote na minha cara e agarrou meus cabelos com as mãos, perguntando se eu era tão bom com os dedos feito o meu pai. Pegou uma de minhas mãos e colocou em seu joelho. Na mesma hora, senti uma coisa muito estranha no meio das minhas pernas. Um furor tremendo levou toda a circulação do meu sangue para a parte de baixo do meu corpo.
Ela empurrou minha mão para debaixo do vestido, questionando se, um dia, eu seria tão bom quanto o meu pai. Senti em meus dedos uma quentura que nunca havia sentido antes. Ela olhou pra baixo e riu deliciosamente, perguntando o que estava acontecendo ali embaixo, que estava sentindo algo crescendo embaixo dela. Eu fiquei envergonhado e, ao mesmo tempo, paralisado. Não falava, não me mexia, exceto pela minha mão. Ela finalmente ficou muda.
Fechou os olhinhos, ainda com um sorriso gigante no rosto e deixou a natureza fazer o resto. Instintivamente, comecei a mexer os dedos e sentir o tecido da calcinha dela. Eu estava no céu e nem sabia disso ainda. Mas percebi rapidamente, naquele dia, que o céu fica coladinho no inferno.
Nunca tinha ouvido a voz do meu pai tão emputecido. O velho despontou no final da rua perguntando que diabos estava acontecendo. Esbravejou com tanta potência que a mocinha saiu do meu colo num único pulo e começou a se explicar. Tomou, logo de entrada, um safanão no pé do ouvido de uma daquelas mãos que tocavam canções tão doces sobre amores perdidos e frustrações da vida. E eu fui o próximo.
Meu pai perguntava, enquanto puxava a minha orelha em direção de casa, que porra eu estava fazendo com o violão dele na rua, se eu tinha perdido todo o meu juízo, que aquela porra de violão era tudo o que ele tinha de bom nessa vida. Me jogou pra dentro da casinha e, lá dentro, fez a festa. Com os olhos injetados em vermelho, ele tirou a cinta da calça e, num berro só, disse que, já que eu queria ser homem, que iria apanhar feito homem. Tomei soco, levei pontapé e fui pulando de cômodo em cômodo, dentro da minha casa pequenina, apanhando de um touro que sentiu a espetada nas costas ao ver seu apreciado violão jogado na beira de uma calçada. Como sempre, meu pai fez tudo no seu tempo. Me espancou aos poucos, alternando pancadas e xingamentos. Me colocou sentado no sofá e apontou o dedo na minha cara, humilhando a minha pouca idade, a minha falta de consideração para com ele e praguejou o dia em que nasci.
Ao final, eu estava caído no chão enquanto ele bufava com as mãos apoiadas na mesa da cozinha. Meu pai me mandou pro quarto e saiu bufando, dizendo que iria terminar de resolver a situação com “aquela piranha”. E eu, no auge dos meus quatorze anos, jazia no meio da sala em um leito de amargura e solidão.
A mamãe chegou algumas horas depois e me viu deitado no sofá da sala. Percebeu que eu estava todo inchado e com restos de sangue na roupa. Silenciosamente, ela comeu e foi para o quarto. Eu estava cansado demais para fazer algo, mas ouvi seu choro. Ela nada disse e nada fez. Meu pai não voltou naquela noite.
Preferi dormir sozinho na sala. Fiquei imaginando o que meu pai foi fazer com aquela moça que sentou no meu colo. Me senti com um ímpeto de matar o velho. Senti vontade de quebrar aquela merda de violão. “Velho maldito”, balbuciei. E aí comecei a lembrar da menina que sentou no meu colo. Lembrei da coisa louca que senti e do calor que tomou conta da minha mão quando toquei a calcinha dela. Voltei a respirar de forma desordenada e aquela sensação estranha tornou a reagir no meio das minhas pernas. Esqueci o mundo, esqueci minha mãe chorando, esqueci meu pai enfurecido e esqueci as dores no meu corpo. Só não consegui esquecer o cheiro da Maria. Acabou que dormi feliz.
Na manhã seguinte, meu pai começou a me dar aulas de violão.
publicado em 24 de Agosto de 2011, 05:08