A Inglaterra está em chamas. Culpa de quem?

“Essa é a nossa comunidade. Por que estamos destruindo o nosso quintal?” – post-it anônino no muro da paz de Peckam, zona sul de Londres

O mundo acompanhou durante a semana passada uma série de protestos e ataques que se espalharam pelas ruas do Reno Unido, assustaram moradores e causaram a revolta da sociedade britânica. Educação, respeito, exclusão social, marginalidade, autoridade, assistencialismo, direitos civis... O número de tópicos e problemas que os protestos colocaram em voga é gigante.

O que rolou de verdade?

Tudo começou na última quinta-feira, quando Mark Duggan, um suposto traficante que morava no bairro londrino de Tottenham, foi morto por agentes da Polícia Metropolitana. Os policiais alegaram legítima defesa, dizendo que Duggan estava armado, mas a família contradizia os agentes.

Mensagens de apoio dos moradores de Peckham

Na noite do sábado seguinte, vizinhos de Duggan se organizaram e iniciaram um protesto pelas ruas do bairro. O ato, que teve um início pacífico, tentava chamar a atenção das autoridades para o abuso de poder e para a forma com que a população pobre do bairro era tratada pela polícia. No entanto, no meio do caminho, as coisas desandaram e a manifestação resultou em três policiais feridos, lojas e casas depredadas e ônibus, carros e prédios incendiados.

Na manhã de domingo, o país inteiro já estava sabendo do que havia acontecido no bairro. No entanto, assim como eu, a maior parte da população acreditava que aquilo era um acontecimento isolado e que terminaria por ali. O que surpreendeu a todo mundo foi que, naquela mesma noite, moradores de outros bairros começaram a entrar na onda dos protestos também. Manifestações violentas pipocaram em Enfield, Brixton, Islington e Oxford Circus, e mais uma vez lojas foram saqueadas e prédios incendiados.

– Brixton foi atacado na noite de domingo. Na segunda-feira, o bairro não parecia mais aquela vizinhança cheia de vida à qual estávamos acostumados. Lixo em todo lugar, janelas quebradas, pichações e lojas incendiadas. A estação de metrô foi fechada e os ônibus não estavam mais parando na avenida principal do bairro. – me contou a moradora local Emma Jeffers.

Àquela altura, o prefeito de Londres, Boris Johnson, e o primeiro-ministro britânico, David Cameron, ambos de férias, já começavam a sentir a pressão e anunciaram que voltariam ao país o mais rápido possível.

Looters saqueiam loja em Hackney

Depois do furacão, a calmaria. E outro furacão

Apesar dos problemas das noites anteriores, a maior parte das pessoas voltaram às suas rotinas na manhã de segunda-feira. No metrô, ruas e escritórios, o que mais se ouvia era comentários sobre os sustos que algumas pessoas passaram e sobre a falta de pulso firme da polícia contra os manifestantes que, agora, já eram visto como looters, saqueadores, marginais, bandidos.

Naquela tarde, os noticiários divulgaram a informação de que a bala encontrada no rádio dos policiais que participaram da morte de Duggan havia sido disparada por um revólver da própria polícia. A notícia reforçou a tese de que o cara não estava armado e foi motivo para mais protestos – os piores e mais violentos até então.

Aquela segunda-feira foi foda. Vários bairros foram atacados, prédios incendiados, inúmeras lojas saqueadas. O país inteiro acompanhava pela TV ou pela janela de suas casas jovens quebrando tudo em atos de violência gratuita. Naquela mesma noite, outras cidades como Birmingham, Manchester, Leeds, Bristol, Nottingham e Liverpool também registravam seus primeiros ataques.

Emma Williams-Sharpe, moradora de Birmingham, me contou:

– Lá fora estava uma atmosfera horrível. Várias lojas estavam destruídas e a polícia estava em todo o lugar. É inacreditável a situação em que este país chegou.

O pior de tudo era que aquilo não tinha mais sentido. Os protestos não tinham mais ligação alguma com a morte de Mark Duggan. Jovens, estudantes universitários, líderes de organizações estudantis e até moleques de 11, 12 anos entraram no embalo e queriam mesmo usar a oportunidade para conseguir pares de tênis, relógios e computadores novos. Inexplicavelmente eles estavam destruindo seus próprios bairros, as propriedades de seus vizinhos e as lojas onde suas mães faziam compra.

Polícias nas ruas, mas com a ordem de "pegar leve" com manifestantes

Mas o que foi que aconteceu?

Desde segunda-feira venho me perguntando o que deu nos caras para que eles destruíssem sem razão seus próprios bairros e levassem terror à vida de seus vizinhos e conhecidos. Obviamente, muita gente opta pela desculpa mais feijão-com-arroz e culpa o governo por ser brando demais com pessoas que só vivem a mamar nas tetas dos benefícios sociais e que não respeitam nada que é dos outros.

Link Youtube | Britânicos "ajudam" um jovem para, em seguida, roubá-lo

Para mim, o buraco é mais embaixo. Nada justifica o que os caras fizeram, mas não acho que eles são os únicos culpados. Se existe uma geração inteira de caras revoltados, dispostos a sair de casa só para destruir o próprio bairro, é porque alguma coisa deu errado. Como imigrante, a visão que tenho é que a sociedade britânica padece por conta de suas políticas sociais. Se por um lado ninguém passa fome aqui, por outro, grande parte da população que vive de benefícios carece de estímulos e ferramentas para sair da situação em que vive. Outros problemas como o alto índice de desemprego, a atual dificuldade para conseguir crédito e a falta de identificação cultural e social com que várias comunidades vivem – principalmente as de imigrantes – também não ajudaram.

Desde o começo do ano, David Cameron vem anunciando cortes no orçamento de vários órgãos públicos. A polícia está entre eles. Por conta disso, o número de agentes trabalhando nas ruas e diretamente com as comunidades vinha diminuindo gradativamente. Por isso, nas três primeiras noites de protestos, faltaram policiais para enfrentar os caras de igual para igual. Apenas na terça-feira é que reforços chegaram de cidades vizinhas, aumentando o contingente para 16 mil, cinco vezes mais do que o de costume. O policiamento intenso intimidou os caras e, por consequência, permitiu que, pelo menos em Londres, a noite de terça-feira fosse tranquila.

Propriedade em chamas em Croydon, Surrey

A reação

Surpreendente foi a reação que os ataques causaram na sociedade. Se os looters se organizavam usando as redes sociais e mensagens de celular, as pessoas começaram a fazer o mesmo contra eles. Iniciativas como o Riot Clean Up levaram centenas de pessoas às ruas para limparem a bagunça que os caras tinham feito. O Catch a Looter também foi uma ideia colaborativa interessante que acabou ajudando a identificar os participantes dos protestos. Os ataques despertaram um senso de comunidade e ouvi histórias até de uns turcos que saíram à rua com espadas para proteger suas propriedades.

A polícia também recuperou o passo depois daquelas primeiras três noites de ataques e, até esse sábado, já tinha feito mais de 1,2 mil prisões, com a maioria dos suspeitos indiciados.

O Parlamento, que estava em recesso, organizou uma reunião extraordinária para discutir as ações a serem tomadas pelo governo. Já houve reconsiderações sobre os cortes na polícia e até discussões sobre implantar um policiamento mais firme e até dar a policiais o poder de abordar qualquer jovem vestindo capuz. Reformas nas políticas públicas, principalmente no setor de pensões, também já entraram em pauta, mas ainda tem muita coisa para fazer.

Não há desculpas que justifiquem os ataques, e todos sabem disso. A um ano do início das Olimpíadas, o mundo inteiro viu que Londres está longe de ser uma cidade perfeita. Mas desta vez foi bom ver uma sociedade acordando, botando a atitude stiff upper lip de lado e assumindo a responsabilidade pelos seus problemas.


publicado em 15 de Agosto de 2011, 12:03
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Thiago Rocha Kiwi

É nosso correspondente em Londres. Jornalista, nascido e criado na selva paulistana, gosta das oportunidades desafiadoras. Apaixonado por informação e conhecimento, enxerga o trabalho como uma forma de evolução e a internet como revolução. No Twitter, @thiagokiwi.


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