A imagem do "herói" na moda masculina | Os Homens na Academia #1

Nova série do PapodeHomem vai promover o diálogo a partir de pesquisas, teses e dissertações que falem sobre os homens e suas questões

Hoje consultor e professor de moda, Mário Queiroz é conhecido também pela marca que levava seu nome.

Criada em 1995 e especializada em moda para homens, a marca Mário Queiroz participou com criações autorais durante vinte edições da São Paulo Fashion Week — duas vezes ao ano, de 2002 a 2012. O que nem sempre foi falado sobre um dos principais estilistas de peças masculinas do Brasil é que ele também é um pesquisador, com trajetória acadêmica importante: Mário é mestre e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.

Assim, na estreia de nossa série “Os Homens na Academia” — que buscará divulgar as pesquisas, trabalhos e descobertas do universo acadêmico sobre os homens para um público mais amplo —, decidimos nos debruçar sobre uma dissertação que virou um livro. Em “O Herói Desmascarado – A imagem do homem na moda”, Mário estuda os editoriais de umas das principais revista de moda do mundo para correlacionar a construção das imagens e dos ideais de beleza, força e jovialidade masculinas ao mito do herói.

A seguir, separei alguns dos trechos mais marcantes da pesquisa acadêmica de Mário. Depois desses quatro trechos, está a entrevista que fizemos com o designer sobre como a imagem que os homens criam para si são indissociáveis das imagens que a moda e a mídia criam para as masculinidades.

“O Herói Desmascarado – A imagem do homem na moda”

Arena Homme Plus, 1998.

Trecho 1:

(...) O “heroísmo”, tema de uma das edições (da Arena Homme Plus), é utilizado para discutir rupturas que acontecem no universo masculino. A primeira imagem analisada é a própria capa, que traz um leão junto a um modelo. A figura do “rei das selvas” servirá para analisar a sede de poder do homem, sua relação com o divino e ao mesmo tempo com seus instintos. A associação da foto com o mito de Héracles (Hécules) e o Leão de Neméia é direta, além de ser um ponto essencial para amarrarmos a questão da moda: o herói ao vencer o leão, usa a pele como um manto e a cabeça da fera como uma coroa.

Além da questão da força, afinal o herói é aquele que vence, há também uma relação com a própria imagem: espera-se que ele seja sempre forte, alto e bonito. O herói é uma idealização do homem comum e ao mesmo tempo está distante do dia-adia, rotineiro e entediante. O homem está sempre esperando um herói que faça tudo aquilo que ele não realiza.

Os homens de corpos atléticos, apolíneos, são a representação dos heróis. Estão presentes na moda principalmente nos anúncios das grandes grifes, que geram imagens de “semideuses”. A questão do corpo musculoso irá surgir em várias partes do trabalho, uma vez que representa uma idealização do homem ainda em nossos dias.

Talvez por serem sempre considerados o provedor, o protetor, o vencedor, os homens vivam com medo do fracasso e acabam por ter que lidar com o sentimento de inferioridade. Sob a necessidade do poder, eles tentam descobrir de que forma o heroísmo entra em suas vidas aborrecidas.

(...)

A capa nos remete ao mito grego de Héracles e o leão de Neméia, um dos doze trabalhos que o herói deve enfrentar. (...) Com a pele como manto e a cabeça da fera como coroa, Héracles representa o homem se fazendo rei sobre todas as criaturas, o herói se veste com o leão – o rei morto.

(...)

O homem da capa não está vestido com a pele do leão, mas está ao seu lado, portanto entendemos que o homem ao dominar o leão assume o papel do rei no lugar daquele que teria este papel apenas nas selvas.

Será nesta árdua luta sem fim para demonstrar poder, enfrentando “leões”, que os homens encontrarão semelhança entre sua existência e a dos heróis.

Os trabalhos de Héracles confirmam que o homem para se aproximar dos deuses – pensando os heróis como “semideuses” – precisa demonstrar coragem e força. A luta traduz o sentido do herói, que será sempre o guerreiro, que estará sempre submetido à luta.

Trecho 2

A coragem aparece associada à beleza como se uma das forças e diferenças entre heróis e homens estivesse também na aparência.

Estes elementos aproximam ainda mais a figura do herói ao universo da moda, principalmente no que diz respeito à diferenciação. Determinadas roupas, acessórios, maquiagem, calçados são objetos que usados pelo homem o tornam diferente dos demais. Esta diferença o afasta dos outros homens, os comuns, e o aproxima a uma forma de divinização que o torna superior. A beleza em torno da imagem do herói o torna modelo para os homens, como foi para os gregos. Sendo assim, os modelos nas revistas de moda assumem o papel de heróis que são copiados pelos “mortais”

Trecho 3

O herói está pronto a atender qualquer chamado, ele está pronto para salvar outras vidas. Mas como pensar em um herói em nossos dias, ou como podemos ser heróis ao menos uma vez na vida, se só pensamos em nós mesmos? A cultura pop elegeu vários tipos de heróis e os igualam, retirando todo o contexto e fixando apenas imagens. Assim, Che Guevara é tão herói quanto Jimmy Hendrix ou Elvis Presley, como Martin Luther King é tão herói quanto a princesa Diana e o jogador David Beckham.  

Alguém falou em moda?

O homem poderá se parecer com seu herói, usar o mesmo corte cabelo, a mesma barba, usar roupas parecidas com a dele. Isso certamente o fará sentir-se mais próximo dele, como se pudesse até mesmo adquirir um pouco de sua força. E se um homem não quiser ser ou ter um herói? Mesmo que lhe falte coragem, ele deverá se esforçar para parecer corajoso, deverá se educar para ser um homem.

Um herói não tem vida particular, parece não ter sentimentos que não sejam o de proteger uma comunidade, não precisa se preocupar com a aparência porque sempre terá a mesma aparência – ao menos da forma que o identificamos. Ele terá um uniforme, sua imagem estará congelada para sempre e nos lembraremos dele da mesma maneira décadas depois. Nossos heróis não envelhecem, não tem outra imagem senão aquela com que nos identificamos.

Trecho 4

“Entendemos que é necessário observar os diferentes papéis do homem na sociedade, afastando a idéia de apenas dois pólos: o homem engessado com suas antigas tradições e preconceitos, e o homem extremamente vaidoso e excêntrico. Quando foi inventado o termo “metrossexual” para designar um homem urbano, que consome design nas grandes metrópoles e que não é homossexual, novamente se instituiu uma constatação muito mais ampla, a do interesse de maior número de homens por expressões estéticas, como a moda, e que não está limitado a questão sexual.

Estes novos termos como “metrossexual e überssexual berssexual” só vêm apontar o quanto o mercado tenta recuperar as perdas, afinal vários nichos do mercado masculino ficaram esquecidos por muito tempo por se acreditar que existiria um único masculino”.

(...) A insatisfação com a própria imagem e a possibilidade de se reinventar aponta que cada vez mais teremos diferentes tipos de homens, que por sua vez, não se apresentarão da mesma maneira o tempo todo. Certamente a moda masculina ainda estará limitada a conceitos muito fortes que derrubam possibilidades de reinventar completamente as formas e os volumes das roupas masculinas, como o uso de saia.

Mas podemos concluir que haverá cada vez mais dificuldade em estabelecer os nichos ou querer que eles sejam fechados: a moda será cada vez mais uma ferramenta para exteriorizar novos sentimentos e ajudará a gerar infinitas formas de expressão, uma vez que apontamos que cada um deverá assumir um estilo, e mudar, quando assim desejar. (...) Não se espera com isso o final de todos os preconceitos, tampouco que todos os homens optem por uma moda mais aberta. Os mais tradicionais, conservadores e resistentes, continuarão existindo, a diferença é que estes não serão mais apontados como exemplos, mas apenas uma faixa em meio a uma diversidade muito grande de estilos.

Uma das coleções de Mário Queiroz

Entrevista com Mário Queiroz

 

1) Você mostra que a ideia de herói é indissociável da imagem que o homem cria para si e da imagem que a junção moda-mídia cria para as masculinidades. Por quê?

Acredito no “imprinting”: as ideias que vão sendo inseridas em nós, então não penso que o homem cria para si uma imagem, mas são as imagens que nos orientam e sem dúvida o herói está associado ao masculino. Quando no mestrado cheguei ao foco de uma única edição de uma revista, o fato da edição se chamar “heróis” foi muito importante. Ver os editoriais da Arena Homme Plus exemplificando tipos de heróis (e anti-heróis) que carregamos conosco como ideais através da imagem de moda foi muito relevante pra mim. Sou um designer que estuda a Comunicação: tanto a dissertação quanto a tese tratam da mesma inquietação com os papeis das nossas masculinidades.

2) Por que você acha que essa construção continua acontecendo até hoje? Crê que esse aspecto, aspiracional e inatingível, é saudável/sustentável para as masculinidades?

As imagens se acumulam, elas parecem camadas sobre camadas. Num momento como o nosso onde devoramos milhares de imagens por dia (ou como diria o Dr Norval Baitello Jr “elas que nos devoram”) é fácil concluir que estamos sim vivendo modelos e modelos, e os heróis não param de fazer sucesso: basta lembrarmos o número das produções de cinemas com os super-heróis. Não penso se “é saudável” ou não, mas se pensarmos em masculinidades no plural buscando conhecer as camadas das quais somos feitos, ficará mais leve certamente entendermos os papeis dos heróis nas nossas vidas e quais ou o quanto os queremos, e quando gostamos de encarná-los.

3) Costumava-se dividir os homens entre os clássicos e os modernos. Você evidencia que esses rótulos já não são mais estagnados, e transitam. A que acha que essas movimentações se devem?

Penso que o nosso tempo tem nos deixado algo especial: o interesse pela diversidade. O interesse além dos polos, do “certo e errado”, e uma valorização a cerca das mil possibilidades que cada indivíduo possa ser. Estou há mais de trinta anos pensando estes movimentos em torno das masculinidades: começamos falando de um novo homem, surgiu o termo, de mau gosto, “metrossexual”, hoje vivemos este embaralhamento de representações.  Mas ao mesmo tempo temos ao lado grandes grupos conservadores, por isto é tão importante falar sobre os movimentos plurais a cerca de homem e mulher.

4) Quando você analisa a reportagem “Quem imita quem?", você ressalta que para um dos jovens retratados o importante é ter um corpo que tire sua imagem de fragilidade. Por quê essa negação à fragilidade é uma das principais marcas da relação entre homens e suas imagens?

Fragilidade é poesia num espaço que valoriza afeto, sensibilidade, equilíbrio. Não é de muitos espaços. O corpo apolíneo pode ser uma forma de negar a fragilidade, o afetuoso, sensível. Um corpo que não existe: que sempre é o mais forte, o que precisa ser coberto de uma armadura de músculos de metal. Há um movimento que vem das novas sociedades de um novo feminismo, de ideais mais dignos onde o homem real é mais valorizado, com todas as imperfeições e fragilidades, mas que venha com boa cabeça e bom espírito. Mas para americanos que elegem ou quem concorda com um Donald, fragilidade é tudo o que há de pior.

5) Quais traços considera mais marcantes na relação entre as construções das masculinidades e as relações práticas entre homens e estilo? O que faz um homem vestir ou deixar de vestir algo?

São muitos homens e muitas formas de se representar. Mas vamos lá: enquanto encontramos a valorização da alfaiataria, também aumenta a importância do acúmulo, da liberdade, da memória, da criatividade no vestir masculinos. Temos no mundo masculino muitos códigos, inclusive os dress codes que representam muito: desde os homens de terno preto das instituições bancárias, ou outras profissões, em clubes ou mesmo grupos informais que “proíbem” o que sai da regra. As companheiras também influenciam muito: há mulheres que incentivam a criatividade, o interesse pela moda do masculino, mas há outras que perpetuam imagens que mesmo os homens hoje preferem não levar tão a sério.

6) Há alguma criação autoral que você já tentou e não fluiu, mas você acharia importante que fosse mais aceito?

A moda não existe para unanimidade:  deve ser escolhida sempre para agradar quem se produz. As pessoas, em sua maioria, são medrosas, temem ser rejeitadas por isso se vestem uniformizadas. Quando as pessoas se sentem mais livres para se expressar como querem, tudo fica mais divertido no social não é mesmo? A elegância passa por você também não se levar tão a sério. O “bom gosto na medida” simplesmente não existe, aquele que não arrisca é desinteressante, não demonstra inteligência e nenhuma nobreza. Se pensarmos assim, vemos com bons olhos mesmo o que nos assusta, ao que foge ao nosso censo estético. A representação de cada um é importante, ultrapassa o que se veste, e isto é um desafio tanto para cada indivíduo quanto para a indústria do consumo.

Mecenas: Natura Homem

Natura Homem acredita que existem tantas maneiras de exercer as masculinidades quanto o número de homens que existem no mundo. Sem modelos a serem seguidos, sem colocar ainda mais pressão sobre os nossos ombros.

As nossas verdades, os nossos ritmos, os nossos jeitos de ser e estar no mundo. Seja homem? Seja você. Por inteiro. Natura Homem celebra todas as maneiras de ser homem.


publicado em 31 de Julho de 2017, 00:30
Ismael veredas corte jpeg

Ismael dos Anjos

Ismael dos Anjos é mineiro, jornalista e fotógrafo. Acredita que uma boa história, não importa o formato escolhido, tem o poder de fomentar diálogos, humanizar, provocar empatia, educar, inspirar e fazer das pessoas protagonistas de suas próprias narrativas. Siga-o no Instagram.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura