A esperança do novo Bento Rodrigues | #ExpediçãoRioDoce

Saiba onde estão as pessoas que moravam nos distritos atingidos pela barragem e para onde elas querem ir

Quando a lama de rejeitos de mineração da Samarco tomou Bento Rodrigues, distrito mineiro a 35 km de Mariana, era o fim da tarde do dia 5 de novembro de 2015. A onda marrom levou consigo o 'barulho do fim do mundo', contaram os moradores do povoado, que só tiveram tempo de correr em fuga. Bento foi arrasado sem aviso.

"Ficamos apavorados ao ouvir tudo se quebrando", disse Dona Irene de Deus, que viveu lá por 32 anos. "Não deu tempo de pegar nada - um documento, uma bolsa com o dinheiro do mês da loja (que guardava em casa), não deu. Se demorasse um minuto a mais, nós não saíamos com vida". O marido dela, Seu José do Nascimento de Jesus ("Mais conhecido como Zezinho do Bento", segundo ele mesmo), presidente da associação comunitária, foi quem pediu socorro aos bombeiros, rádios e emissoras de televisão.

Quando os helicópteros chegaram à região desceram até Paracatu de Baixo, o distrito seguinte do rio Gualaxo do Norte (que serviu de caminho para a lama), para alertar os moradores. De lá, sobreviveram todos. Já na área de Bento, quatro moradores e uma senhora que visitava parentes foram vítimas da catástrofe. Mesmo assim, a população considera que foi menos trágico do que poderia ter sido. Afinal se os 62 milhões de metros cúbicos da barragem de Fundão tivessem se derramado durante a noite, pouca gente teria escapado.

Dona Irene de Deus e Zezinho do Bento, no hotel em que estão provisoriamente hospedados

Conhecemos os dois distritos exatamente um mês após o desastre. Por conta da maneira que as notícias nos afetaram, Ismael, que é mineiro, e eu, decidimos ir entender pessoalmente o que estava acontecendo ao longo do caminho da lama.

Em Bento Rodrigues encontramos a exata sensação de cidade fantasma, um cenário apocalíptico. Só algumas pessoas voltam pra buscar objetos, lembranças, fotos. Ali é a casa da desolação. Em Paracatu, à primeira vista, quase parecia haver uma pintura padrão nas construções: a metade inferior de todas as casas agora é marrom – marca que o tsunami de rejeitos deixou. Ambos os lugares têm um cheiro metálico muito forte, proveniente da lama compactada no chão e acumulada em montes.

Esse cheiro acompanhou todo nosso trajeto até a foz do Rio Doce, no Espírito Santo.

Nos escombros de Paracatu: o alerta sobre a alta tensão existia, mas sobre a lama não

Ao visitar os distritos atingidos, uma das primeiras perguntas a surgir é: onde está toda a gente que morava aqui (Bento Rodrigues tinha uma população estimada em 600 habitantes)? Algumas abrigaram-se nas casas de parentes em Mariana, mas grande parte está hospedada em hotéis da cidade ou alojadas em novas moradias, ambas soluções bancadas pela Samarco. Às terças e quintas, há reunião das comissões de moradores com representantes da Samarco, Prefeitura e Ministério Público.

O acordo entre as partes prevê a construção de um novo Bento Rodrigues e uma nova Paracatu, próximos a Mariana. Como isso vai levar tempo para se concretizar, manter os vínculos comunitários é fundamental. Quando quase nada concreto restou, as relações são o que pode haver de mais seguro. "Queremos adquirir um bairro em que vamos colocar o nome de Bento. Não pode ir cada um para um lugar, todo mundo espalhado", afirmou o presidente da associação comunitária. "A gente tem que permanecer unido e eles têm que reativar o Bento”.

A demanda é por construir os distritos com configuração mais semelhante possível da original. "Eles têm direito não só a uma cidade e suas casas, mas aos vínculos comunitários", disse o promotor que trabalha no caso, Guilherme de Sá (leia abaixo a entrevista com ele). Assim que pôde, Seu Zezinho voltou até a sede da associação comunitária de Bento, que serviu de abrigo para população no dia em que a lama subiu, e retirou a plaquinha do prédio. "Vou levar pra onde a gente for", ele afirmou.

Logo após contar o horror que foi ver a lama subir e ficar ao lado de vizinhos aguardando socorro, S. Zezinho afirmou que ainda confia na mineradora responsável pela barragem. "A Samarco vai fazer o que está prometendo, não vão deixar ninguém na mão". Segundo ele, o presidente da Samarco até chorou na primeira reunião que tiveram. "Chega deu dó".

O papel da promotoria

Guilherme de Sá, 32, é o promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais que acompanha as negociações entre a população atingida e a Samarco. Natural de Ouro Preto, cidade vizinha, ele está há um ano e meio na comarca de Mariana e falou sobre os desafios do seu trabalho.

Tem chamado nossa atenção o quanto as pessoas confiam na Samarco, acreditando que ela vai resolver os problemas que surgiram com o rompimento da barragem, pagar indenizações etc. Como você vê isso?

Metade dos moradores do prédio em que eu moro são trabalhadores da Samarco. Ou seja, a empresa tem uma influência muito grande na região. Quem não trabalha lá conhece alguém que trabalha, tem um parente, depende indiretamente da empresa. Isso faz com que as pessoas confiem muito na companhia, e nós sabemos que ela tem condições de cumprir todos os acordos. Nos últimos anos a Samarco teve mais de 2 bilhões de lucro por ano, e nós vamos buscar esses recursos.

Com muita pressão, ela vem cumprindo o que deve, tem dado cartão para as famílias fazerem retiradas bancárias. Chamamos essa primeira fase de direitos emergenciais ou assistenciais, que não são definitivos.

Ouvimos alguns moradores chamarem de acidente o rompimento da barragem. Grupos de defesa da população insistem em afirmar que não foi acidente. Você culpabiliza a Samarco? Como vê essa questão da responsabilidade?

Assim que a empresa assume uma atividade de risco, ela assume o que pode vir como consequência disso, seja ela diretamente culpada ou não. Do ponto de vista humanitário é irrelevante dizer se a culpa é da Samarco, e essa questão para a minha área não importa.  Se a gente tivesse que apurar a responsabilidade para exigir direitos, isso demoraria muito. Para que as pessoas não fiquem desamparadas, não ficamos dependentes dessa resolução. Isto será apurado pela promotoria de meio ambiente, mas por enquanto não houve nenhum processo imputando responsabilidade à empresa.

Há o pedido de um novo Bento Rodrigues. O Ministério Público acha que isso é possível?

Isso é possível sim. É direito da comunidade e uma obrigação da empresa. Eles têm direito aos seus vínculos comunitários e ver reconstruído seu lugar. Por isso, é preciso garantir a participação das pessoas no processo, o que torna o caminhar um pouco mais lento pela quantidade de gente e fases envolvidas. Há primeiro a discussão de como isso será feito e o planejamento precisa ser aprovado. Depois são feitos os projetos arquitetônico e executivo para só então, após todas as aprovações, partir para a construção. Estão envolvidos representantes dos atingidos, com uma comissão de cada localidade (uma de Bento Rodrigues, uma de Paracatu de Baixo e uma para as menores), Ministério Público, Prefeitura e a área social e de apoio comunitário da Samarco.

O MP está aqui para exigir direitos coletivos, não podemos exigir o direito de um só. Estamos tentando formalizar um termo de ajustamento de conduta para que a Samarco garanta os direitos com rapidez e saiba que vai cumprir com suas obrigações.

Quais caminhos são chave para solucionar um problema desse? Como a própria comunidade pode se ajudar?

É um caminho muito longo, muito difícil, cada dia é um passo. Os atingidos estão ajudando encaminhando as demandas. Nós formalizamos, mas eles é que apresentam as necessidades. Uma delas era sobre os carros que ficaram presos na lama e me parece que a empresa já está dando baixa nos carros.

Como foi para você, pessoalmente, ver seu trabalho necessário de maneira tão decisiva nesse momento?

Nunca pensei que uma coisa que pudesse acontecer assim. É realmente um desafio muito grande. Ainda nem é possível ter a dimensão exata dos danos ambientais nem dos danos comunitários. O apoio técnico do Ministério Público vem sendo muito importante para que eu possa fazer meu trabalho como deve ser.

***

Esse texto faz parte da coleção Expedição Rio Doce, reportagem especial produzida para o Papo de Homem pela repórter Nina Neves e pelo repórter e fotógrafo Ismael dos Anjos – iniciada com um chamado à nossa comunidade para recebermos sugestões de perguntas a serem investigadas.

Nosso enviados percorreram 2.500 km da Barragem de Fundão à foz do Rio Doce para investigar a maior tragédia ambiental da história do Brasil. Tem alguma pergunta? Nosso time vai tentar responder a vocês com reportagens que serão publicadas ao longo da semana.

No futuro pretendemos realizar mais reportagens especiais sobre temas de grande interesse das pessoas, e essa ida a Mariana é uma semente dos  nossos sonhos para o futuro.

Puxe uma cadeira e construa esse especial conosco.


publicado em 21 de Dezembro de 2015, 05:33
Nina perfil

Nina Neves

É jornalista freelancer, fotógrafa amadora por hereditariedade, baiana em SP porque assim é a vida, interessada na cultura em todas as suas formas. E cuida de vinte plantas na varanda.


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