A dança de Ártemis

Como a mitologia e a mudança de estações podem te colocar em contato com o mundo natural e ajudar a entender melhor o que está à nossa volta

As nuvens no céu tal qual espuma branca espalhada no mar azul anunciam a aproximação da frente fria.

Dias cada vez mais curtos, viajamos na nave Terra rumo ao momento em que dias e noites são iguais em ambos os hemisférios do globo – encontro de forças especial que ocorre duas vezes ao ano. No último dia 20 de março, tivemos o Equinócio de Outono aqui na metade Sul da esfera terrestre: a partir dessa data literalmente mergulhamos na escuridão enquanto as populações do Norte saem dela ao encontro da luz. As forças de vida e crescimento existentes no verão – luz, calor, água, brotação, germinação – lentamente diminuem sua atuação, abrindo caminho para o escuro, frio, seca, dormência no crescimento e queda de folhas. O Equinócio de Outono é o clímax de celebração da abundância das colheitas de um Verão bem trabalhado.

No sítio, longe das distrações modernas, é possível reduzir a Vida aos seus termos mais simples. Os poros da pele pulsam no ritmo do Universo. A mente migra do mundo material exterior para a imensidão das dimensões interiores e a natureza exala o sopro final de um ciclo para iniciar uma longa inspiração.

É tempo de introspecção; desde os tempos em que os deuses caminhavam pela Terra.

Quem não se apaixonaria por Ártemis…

Rainha das florestas, de temperamento introvertido, aventuroso, independente. Deusa da caça de corpo viril, sempre acompanhada por animais, pássaros e lobos. Nasceu muito rapidamente e logo em seguida ajudou sua mãe a parir o irmão gêmeo, Apolo, que nutria por ela um enorme ciúme.  Em sua infância, Ártemis pediu ao pai Zeus que a deixasse passear e bailar livremente pelas matas em companhia dos animais e feras, livrando-se da obrigação do casamento. Ártemis dançava pelas florestas com sua túnica branca esvoaçante e arco de caça dourado pendurado ao ombro. Os Deuses abandonariam o Olimpo em um segundo para passar o resto de seus dias como mortais ao seu lado. Mas homem – ou Deus – algum tinha capacidade de conquistar sua atenção.

Com exceção de Órion.

Filho de Poseidon, Deus do mar, e de Gaia, Deusa da terra, possuía beleza magnífica e cresceu tanto em altura que era capaz de caminhar pelo leito oceânico sem que as águas cobrissem seus ombros. Caçador extraordinário, ele e Ártemis encontravam-se em uma dimensão inalcançável por qualquer outra companhia. Quando estavam juntos, suas personalidades fortes e individuais jamais se fundiam; complementavam-se em poderosa simbiose.

No entanto, quanto mais luz, maior a sombra. Apolo nutria pela relação dos dois um ciúme incontrolável.

Certo dia, enquanto Órion fugia de um escorpião gigante, Apolo desafiou sua irmã gêmea nas habilidades com o arco. À beira da praia, apontou um pequeno ponto escuro no horizonte e duvidou da capacidade de Ártemis em acertá-lo. Orgulhosa, ela retesou a corda do arco dourado e disparou uma flecha certeira. Em alguns instantes seus pés imersos na água mancharam-se com sangue, e com um sobressalto percebeu o corpo inerte de seu grande amor flutuando em direção à areia.

Órion é uma das constelações mais notáveis e de mais fácil identificação no firmamento. As três estrelas conhecidas como “três Marias” formam seu cinturão. Uma das estrelas mais brilhantes, Betelguese, de brilho avermelhado, forma o ombro do caçador. Rigel, também de briho intenso, forma a diagonal do tronco de Órion.

Simulação de imagem do céu em Taubaté, em 20 de Março de 2015 às 21:00. Note Órion de cabeça para baixo, à Noroeste. Imagem feita com o software Open Source

Ártemis, ou Artemísia, está presente no firmamento representada pela lua – que quando crescente desenha seu arco. O escorpião é a constelação mais característica do céu de inverno e, uma vez encontrado, sua imagem jamais é esquecida. Ele aparece sempre à leste de Órion, e poucos dias do ano ambos estão presentes juntos no céu noturno.

Simulação do céu de Taubaté em 20 de Março de 2015 às 04:11. Note o Escorpião no topo do firmamento. Imagem feita com o software Open Source

À noite, Órion continua sua jornada para Oeste em fuga incessante do Escorpião; que dominará o firmamento. A nós, reles mortais, em dúvida quanto ao desfecho da mítica estória de amor, resta assistir ao espetáculo dos Deuses que se desdobra no palco celeste.

Essa pequena estória da mitologia Grega foi contada milhares de vezes por mães e pais ao colocar os filhos para dormir e entreter as crianças. Conectando elementos da natureza presentes na vida cotidiana à imaginação, os gregos antigos desenharam figuras no céu e criaram estórias riquíssimas em valores morais, éticos, hábitos e costumes de seu tempo. E o pano de fundo das estórias, o firmamento, se movimentava ao longo do ano na mesma cadência dos movimentos terrestres, dando ritmo e dinamismo à transmissão cultural do povo fundador do que chamamos de cultura ocidental.

Da mesma forma, outro povos milenares – como os Chineses e Egípcios, povos tradicionais Tupi-guarani, Lakotas, Maoris, a cultura Nórdica e Polinésia pré-industriais – tinham na natureza, e especialmente no céu estrelado, as páginas ilustradas dos livros que transmitiam sua cultura e modo de vida. O calendário de plantio e colheita, corte de madeira, festas, rituais religiosos e estações de caça eram todos definidos pela posição dos astros no céu.

Assim como outros navegadores, os Polinésios utilizavam as estrelas como referências para estimar sua localização no oceano. Como complemento ao método de navegação, cada caminho entre as milhares de ilhotas do arquipélago tinha uma música específica, cujo tempo de duração era exatamente o tempo para chegar ao destino. A letra da música descrevia as particularidades do caminho: cardumes de peixes, plantas, recifes de corais e até sons. Algumas das embarcações possuíam no casco uma “câmara” localizada abaixo da linha d’água, onde um navegador experiente viajava deitado apenas ouvindo os sons do percurso.

Ritmo é uma qualidade intrínseca da Natureza e do Universo, e criar sincronia com esses pulsos universais causa uma enorme sensação de pertencimento a algo muito maior. É um exercício interessante e divertido “parear” o ritmo individual de nosso organismo com os ritmos maiores do planeta e do cosmos, e a mudança de estações do ano é uma excelente oportunidade para começar.

À medida que enxergamos o dinamismo do mundo natural no qual estamos imersos (mudanças nas cores das folhas de árvores, épocas de floração das plantas,  nível dos rios, cor do céu, forma das nuvens, movimento dos insetos, canto dos pássaros, qualidades do pensamento e da ação individuais e coletivas), ganhamos vocabulário e narrativas ecológicas que nos ajudam a entender melhor o mundo à nossa volta. E não é preciso estar em um sítio ou isolado em locais remotos para começar a fazer essa conexão. As grandes cidades oferecem uma enormidade de oportunidades para mergulharmos no mundo natural no qual estão inseridas. Basta abrir os olhos.

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PS: Aos interessados em saber mais sobre o céu e as constelações, vale a pena baixar o software Open Source “Stellarium”. Com ele, é possível simular o céu em diversas localidades e épocas do ano, visualizar as constelações e se aprofundar na maravilhosa ciência da Astronomia. E de quebra, mergulhar na mitologia e compreender um pouco mais o espírito humano.


publicado em 22 de Março de 2015, 00:05
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Alexander Van Parys

Apaixonado pela natureza e pela vida ao ar livre, é Engenheiro Agrônomo e Agricultor Ecológico. Adora ler, aprender e empreender. Está no Sítio Gralha Azul, no Twitter e no LinkedIn.


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