Sabe aqueles 30 segundos travestidos de 2 horas nos quais você está apanhando e acuado em um corner, levando um tremendo ground n’pound? Quando a sua única preocupação é manter-se vivo enquanto o seu oponente te martela sem dó?
É, meu caro, se não sabe, irei te contar: tomar uma bela surra é uma arte.
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Oi, senhorita dor
Iniciei meus estudos nas artes marciais há cerca de sete anos em uma academia perto da minha casa e, primeiramente, no tão falado Muay Thai.
Meu mestre - sim, ainda existem mestres no mundo - era baixinho, patola e do tipo sério, frequentemente de mau humor. Com ele tudo era muito simples: aluno aprendia na porrada. Fazia uso de cabo de cortina, vassoura, pneu de caminhonete e, claro, das suas próprias mãos, joelhos e canelas. Tudo era pretexto para colocar nossa resistência à prova, e nós, meros iniciados, o víamos com respeito e medo, sem entender exatamente o porquê daquela insanidade.
Acontece que o tempo passa e a tudo se habitua.
O medo - aquele suor frio ao sair de casa pensando "droga, não devia ter comido macarronada antes do treino" - começa a dar lugar à busca de uma razão para se preparar uma equipe, como se esta fosse apanhar de uma torcida organizada inteira. O negócio é que apanhar é algo traumatizante, seja para seus ossos ou para seu moral. Ver anos de treino a fio serem subjugados em segundos e pagar por isso é algo que se faz recordar muito além da cicatrização de um supercílio ou de um nariz fodido.
Entretanto, é justamente naquela hora, apanhando feito um cachorro, que você vê o imenso nada que se é.
É ali, no chão, cansado, sangrando e tentando não tomar uma bela cotovelada na cara que você se defronta com o fato óbvio - ou nem tanto: “caralho, se eu não fizer nada, esse cara vai me matar”. Infelizmente, no início, entender isso não resolve nada. Você continua apanhando até apagar ou o juiz ficar com pena de você e encerrar o seu martírio. E nem adianta fechar os olhinhos torcendo para tudo passar rápido...
Link YouTube | ...só que não passa nada rápido
Então, leitor, se entender não resolve.
Xing ling’s time
Pois bem. É nessa hora em que aquele sacana do meu mestre começa a fazer sentido. A questão não é ignorar a dor ou se tornar imune a ela, mas sim abraçá-la. É enxergar que apanhar nada mais é que o outro lado da moeda de bater. Não há opostos. Tudo é a mesma coisa.
Embora pareça discurso clichê de mestre budista de filme chinês, foi tomando muita porrada que eu vi a razão de toda aquela merda de tomar chute na boca do estômago de graça: é no desespero, no pau quebrando, no vai ou racha, que se diferencia aqueles que entendem o espírito das artes marciais.
Está justamente em se manter a lucidez e a frieza mesmo enquanto se é atropelado por um tanque. É saber que bater sem finalidade é a mesma coisa que apanhar por nada. Sem estar atento ao que acontece, não há aprendizado. E, para aprimorar-se, nada melhor do que uma bela surra consciente.
Engraçado, só hoje faz sentido algo que meu mestre sempre dizia quando reclamávamos após algum calejamento louco:
“Disciplina é saber que tudo muda o tempo todo, portanto, dê o seu melhor em cada coisa por mais boba que pareça. E tire algo novo disso.”.
E olha que nunca achei que tomar uma joelhada na costela fosse algo trivial.
Mas, não é o que o safado tinha razão? Era somente acuado e sendo pressionado que eu me despia de toda a arrogância e orgulho, passando a encarar as coisas de frente, olho no olho, lutando centímetro por centímetro.
É estando sóbrio no meio da tempestade, que se entende o “abraçar a dor”.
Ela simplesmente faz parte da brincadeira. Preocupar-se com quem está espancando quem é inútil. Saber que um dia se vence e outro se perde tira o foco de ambos, pois se passa a visualizar não mais a subida ou a descida, mas, apenas a estrada. É ali onde reside o espírito da arte marcial. É treinar exaustivamente um golpe que nunca vai se usar. É aprender o foderoso golpe explode coração sem poder exercê-lo. Está além da passividade de se “entender”. É dedicar uma vida inteira a apenas aprimorar-se.
Link YouTube | Batendo feito gente grande, apanhando feito gente grande
E, talvez - talvez - um dia quando você chegar àquela velha conclusão: “caralho, se eu não fizer nada, esse cara vai me matar”, você, lá no fim do poço, entre sangue e suor, será capaz de fazer alguma coisa.
Se não, sorria e aproveite a surra.
publicado em 28 de Setembro de 2012, 15:04