[+18] Bom dia, Aisha Brunno

A Aisha foi fotografada por Peixe Marino

Nota editorial: acreditamos que nudez, sensualidade, desejo e diversidade são discussões essenciais de nosso tempo. E que há espaço para tratar disso sem objetificar e ofender, mas sim valorizando toda a riqueza do masculino e do feminino. Para entender porque publicamos ensaios de homens e mulheres e saber mais sobre o que aspiramos para a série "Bom dia", leia o que escrevemos aqui. E se tem um ensaio que deseja publicar, fale conosco pelo luciano@papodehomem.com.br .

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"Quando chegaram às nossas terras, éramos os donos e eles tinham a Bíblia nas mãos... ensinaram-nos a orar de olhos fechados; hoje temos a Bíblia, somos obedientes a eles que são os donos das terras."

O telefone tocou, era Peixe Marino avisando que chegaria às 11:30. Era a primeira vez que eu seria fotografada nua por um homem. Foi curioso perceber que a sensação de frio na barriga vinha também de um medo, construído socialmente. 

Almoçamos e conversamos sobre a vida, sobre a infância, nossos pais e em como sempre fomos condicionados a usar uma máscara de macho, fosse para proteger os irmãos mais novos ou para pegar a garota bonitinha da escola.

O rapazinho da família, o homem da casa, o marido ideal, o super-herói.

​O tempo foi seguindo e acreditamos que ser homem é não sentir, não chorar, não se afetar por nada que seja dito de menina, de mulher, feminino, mariquinha, pintosa, passiva. Nós fomos obrigados a aceitar um ideal do que é ser homem sem poder questionar o significado disso nas nossas vidas, afetos e desejos.

Raramente pudemos falar sobre a aula de sistema reprodutor com nossos pais. Eu ainda me lembro da minha primeira aula sobre o corpo humano e como foi desconfortável descobrir dentro de uma sala com estranhos que algo estava errado comigo. A biologia explicava o homem e a mulher e a reprodução e era isso. Oi? Isso!? Não nos ensinaram na escola que gênero vai além da biologia, que é uma construção social.

Fomos educados com a máxima de que futebol era para meninos, enquanto meninas ocupavam o pátio da escola se virando como podiam para se distraírem em seus bambolês. Quantas vezes, no ensino fundamental e médio, assistimos calados a turminha de meninos contra aquele amiguinho afeminado? Talvez pensássemos que  ele fez por merecer, afinal, pode ser gay, mas com viadagem o coro é certo e o choro é livre.

Hoje, vejo alguns caras em aplicativos gays se identificando como “não curto afeminados, gordos passem pra próxima, quero malhados e fortes, bromance e no sigilo” e ainda juram que não estão contribuindo para que a necessidade do uso da máscara de macho se perpetue.

Meninas, depois de certa idade, são obrigadas a usar camiseta enquanto meninos crescem com a  liberdade de poderem andar sem camisa pela rua até o dia que não quiserem mais. Bons tempos, quando por aqui andávamos nus sem portugueses andando pelas nossas quebradas. Tribos de corpos.  

É necessário revisitar o passado e reescrever o que foi nos ensinado. Tanto os livros escolares quanto a pornografia foram nossos mestres. Um nos educou a ver mulheres, as negritudes, os corpos indígenas dentro de um recorte de subordinação e o outro nos educou a tratar todas essas pessoas como objeto a ser usado e descartado. Uma grande trama sistêmica para nos separar do foco que é o de nos unirmos pelo fim de todas as opressões.

Eu adoraria lhe enviar fotos felizes, de dias belos mas não será possível. Ainda somos o país que mais mata por racismo e preconceito de gênero no mundo. Daqui a 23 minutos mais um corpo negro vai cair e amanhã, no inicio da tarde, mais uma LGBT assassinada vai girar a linha do tempo.

Isso não te deixa cansado? Afete-se pelos encontros, pelo que o outro corpo pode contribuir para que você se desconstrua e melhore sua caminhada. Ouça mais as manas e as monas. Para existir dialogo é necessário escuta e coração aberto.

Quais coisas você já deixou de fazer por ser coisa de mulher? E com quem você aprendeu isso? Não existe juízo de valor nessas duas perguntas, mesmo porque também sou fruto deste mesmo sistema. Com cinco ou seis anos já aprendia com os manos da quebrada a tirar onda com travesti na rua e sair achando que não era problema. O sistema nos encurrala o tempo todo e temos medo de perder nossos privilégios de homem, mas a gente se salva é exercitando o pensamento. "Conhecereis a verdade e ela vos libertará"... falando nisso, acabo de lembrar de um livro que considero obrigatório para todo brasileiro ler, chama-se Brasil uma Biografia da Lilia M. Schwarcz e Heloisa M.Starling e o documentário The Mask You Live In, para todos os homens e/ou a quem se interesse aprofundar nos estudos sobre gênero e sexualidade. São verdadeiros descortinadores da retina.

​Peixe e eu finalizamos o dia na grama do parque, brindando o pôr-do-sol com um bom chá pra curar essa azia que está sendo viver.

Eu desejo a você novos olhares, novos futuros e maneiras desconhecidas de experimentar o mundo. Viver numa caixa onde tudo tenha que ter rótulo e separações não é uma necessidade básica nossa. Podemos reaprender a viver e praticarmos atitudes melhores com nossas crianças, nossas mulheres, nossos gêneros diversos. Dê asas à sua imaginação e busque maneiras de contribuir positivamente com o mundo. Faça sua trajetória valer a pena. Construir um futuro possível só depende de nós mesmos e esse futuro é o agora!

E questione-se todos os dias: de que lado você vai ficar?

Gratidão, Peixe Marino, pela partilha, por se descortinar, pelo trampo sensível. Seguimos em desconstrução.

Boa semana a todxs. E que todo encontro seja para o bem. 


publicado em 18 de Março de 2019, 16:39
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Aisha Brunno

Atriz, performer de relações, abolicionista contemporânea, anti racismo, anti opressões. Vive em voz alta. Uma dona que TRANStorna.


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