Um vídeo (e mais nove sugestões) para você entender a filosofia do Estado Islâmico

Algumas indicações para entendermos melhor a filosofia de um dos grupos radicais mais falados hoje

O autointitulado Estado Islâmico é pauta recorrente em nossas conversas diárias ou nos noticiários. Na maioria das vezes, atrelado à falas de medo e ódio. O grupo extremista causa uma mistura de fascínio e repulsa que desperta a curiosidade das pessoas e as manchetes constantes de jornais.

O problema é que esse interesse costuma ser acompanhado de equívoco e desinformação.

Num primeiro momento, não existe nada de errado nisso. Entender as nuances da história e os ideais político-filosóficos de um grupo formado em 2003, em uma área específica do Oriente Médio, não é obrigação de ninguém e requer conhecimentos históricos e geopolíticos específicos, além de particular interesse por uma região que, até poucos anos, era ignorada pela nossa mídia.

Mas essa ignorância, velada na forma de conhecimento parcial, se torna problemática quando se converte em discursos de ódio direcionados para pessoas indiretamente envolvidas. Quando existem ataques e o consenso - ainda que no formato de piadas e brincadeiras sacanas - que todo muçulmano é um terrorista, temos algo profundamente errado. 

E não estamos cometendo apenas um erro jocoso aqui, mas ajudando o Estado Islâmico em seu crescimento.  

É no meio desse oceano de incertezas que essa vídeo aparece para clarear nossas mentes e ideias. O Ivan Mizanzuk, criador do excelente podcast Projeto Humanos - que teve sua segunda temporada focada nos conflitos da Síria e do Oriente Médio -, busca explicar de forma clara, em pouco mais de 50 de minutos, alguns dos pilares que formam o EI: seu nascimento e passado, suas diferenças com a Al Qaeda (responsáveis pelos ataques às Torre Gêmeas em 2001) e, principalmente, sua filosofia religiosa e ideológica. 

Ivan Mizanzuk, criador do podcast Projeto Humanos, falando sobre a filosofia por trás do Estado Islâmico e as principais diferenças do grupo com a Al Qaeda.

É interessante perceber os caminhos percorridos pelo Mizanzuk, bastante pautado por livros e referências. Fica aqui a recomendação de tirar um tempo e assistir ao vídeo, que vale sua longa duração, mas tentarei sintetizar e elucidar as diversas informações que ele traz, seguindo os pilares que citei: 

Surgimento

O grupo autointitulado de Estado Islâmico surgiu em 2003, como braço iraquiano da Al Qaeda. Aqui a história é extensa e em muito se confunde com a do grupo de Osama Bin Laden, mas em alguns pontos merece destaque, sobretudo no que diz respeito ao seu fundador, Abu Musab Al-Zarqawi.

O primeiro líder do que se tornaria o ISIS teve uma história marcada desde jovem pela participação em ataques de terror e o envolvimento com grupos terroristas. Em especial, vale destacar, a Al Qaeda, liderando um campo de treinamento da organização até 2001, no Afeganistão, quando foi obrigado a deixar o país por conta da invasão liderada pelos norte-americanos.

Em 2003 voltou a um cargo de liderança, quando auxiliou a criação da Al Qaeda iraquiana, braço da organização de Bin Laden. Mas não demoraria muito para esse novo elo da rede se destacar pela truculência e violência de suas ações, e Al-Zarqawi e o grupo que liderava se distanciar muito da Al Qaeda original. 

As diferenças com a Al Qaeda

Ainda que os objetivos dos dois grupos possam ser considerados o mesmo - a criação de um suposto Estado islâmico puro -, eles se diferem em um ponto principal: a maneira que almejam conquistar esse objetivo. 

A Al Qaeda acredita que para a construção desse Estado ser possível, é necessário primeiro ocorrer uma desestabilização do ocidente e, especialmente, dos Estados Unidos, por meio do terror. Só assim, com a queda do ocidente e o não envolvimento dele em terras do Oriente Médio, esse Estado poderia ser moldado seguindo os ideais do grupo. 

Ainda que o Daesh (uma forma não traduzida de nomear o ISIS, que é até mais recomendada por alguns) também vise desestabilizar o ocidente, seu foco principal é a construção de seu califado, que é, em outras palavras e em uma definição simplista, a expansão e consolidação desse almejado Estado com a visão do que seria de fato o Islã. 

E essa visão ideológica é extremamente radical. O Estado Islâmico não representa o que seria o islamismo - até porque é impossível de se reduzir uma religião de significados e visões múltiplas há um único todo. 

Mas ele representa uma filosofia que atrai milhares de simpatizantes, e que precisa ser entendida. 

A filosofia do Estado Islâmico

Antes de abordamos diretamente a filosofia do EI, é necessário antes um olhar atento sobre qual visão religiosa ela está pautada. E aqui já passamos a entender ainda mais a confusão e diversidade de camadas que permeiam o islamismo. 

O Daesh é uma organização declaradamente sunita salafista jihadista. É confusa a sopa de palavras? Sim, e é para ser assim, porque aqui falamos de milênios de construção religiosa. Mas podemos desmembrar a alcunha em partes, para entender mais à fundo seu significado: 

Sunismo: 

Aqui precisamos voltar ao século VII, na fundação do Islã. Após a morte do profeta Mohammed (ou Maomé, como chamamos), o que se ocorreu foi um disputa de sucessão da liderança espiritual entre dois lados: aqueles com a crença de que o sucessor deveria ser um descendente direto, na figura de Ali, sogro de Maomé, que formaram o grupo que hoje chamamos de xiitas, e aqueles que acreditavam que a sucessão poderia ser exercida por qualquer um, desde que eleito e aceito em consenso pela comunidade. Esses últimos formaram o que conhecemos por Sunismo, principal vertente do islamismo.

Os sunitas acreditam que o califa é o representante e sucessor legítimo do profeta (e esse é, inclusive, o sentindo da palavra), e assim como ele, mensageiro direto de deus. Por isso é uma figura respeitada e obedecida, e também um cargo cobiçado, o que rendeu uma série de conflitos e divergências durante a história.

Já a visão xiita entende seus representantes, após a derrocada e não obtenção do poder no califado islã de Ali e em outros momentos futuros, como guias espirituais, adaptando a leitura dos escritos sagrados (isto é, o Alcorão) para os dias atuais. 

As diferenças entre as duas vertentes se expandiu muito além da disputa política, com pontos que essa definição simplória não vai abranger. Esse pode ser um bom começo, se você está interessado em saber mais. O que procuramos entender aqui é o contexto em que o EI está, de uma vertente sunita muito específica: a salafista.

Salafismo: 

O salafismo é uma concepção sunita surgida no século XIX, com uma visão extremamente radical e conservadora do que seria o Islã. 

O que se busca aqui é um islamismo muito próximo do que eles concebem como o vivido por Maomé e as pessoas de seu entorno, o islamismo que consideram puro. Eliminar a secularização da religião e voltar ao fundamentalismo dela é o foco dos salafistas, que como destaca o próprio Ivan no vídeo, se dividem em três perfis: o salafista quieto (que ele traduziu do verbo "quietest"), o político e o jihadista, que é onde se encontra os membros do Daesh. 

Jihadista:

O termo sofre de grande confusão e é acusado de mal uso pela mídia e pelo ocidente. Longe de ser um especialista no assunto, só passarei o significado mais atribuído: que é o de - por mais que jihad também represente a luta do muçulmano consigo mesmo - "uma guerra santa, que seria de pegar em armas e lutar pela expansão do islamismo, tendo uma interpretação específica de algumas passagens da vida do profeta", como pontua o próprio Mizanzuk.

Para que serve toda essa volta e longa explicação teológica? Para mostrar como o EI é um galho de uma vertente extremamente específica e radical de um eixo do Islamismo. É uma minoria que não pode, e não deve, ser entendido como um todo. 

Mas é uma minoria que faz barulho, e tem objetivos ambiciosos. A construção do califado e o desejo de torná-lo global vai de acordo com a visão salafista jihadista da organização, e se desdobra em um radicalismo não só contra o ocidente, mas também contra outros muçulmanos. O Estado Islâmico já matou um número muito mais alto de muçulmanos do que ocidentais. 

"O Estado Islâmico lançou [em 2014] um documento falando da eliminação da área cinza do islamismo. Você olha a bandeira do Estado Islâmico e você vê lá que ela é preta e branca, ela não tem áreas de cinza, a ideia é justamente que não existe muçulmano de área de cinza, não existe muçulmano ocidental.

Essa é a ideia dos caras.

A ideia que eles querem promover, a ideologia que eles querem promover. Você só é muçulmano se for salafi jihadista, sunita, obviamente, e que more no oriente médio. More nesse califado que está sendo construído e que ajude a construir esse califado. Essa é a ideia que o EI promove."

É um grupo de ideais claros e uma visão opaca do que seria um mundo correto. Por meio da truculência, da barbaridade e do terror, eles querem construir um mundo específico. O mundo deles. Querem tornar realidade esse califado global. 

O Mizanzuk levantou um importante ponto no vídeo, que já abordei no início desse texto: discursos de ódio carregados de equívocos só ajudam a disseminar os ideais do EI, a radicalizar e prospectar muçulmanos que não são terroristas ou homens-bombas, como costumam apontar, mas que se enquadram nessa suposta área cinza de ocidentalização que o Daesh tanto refuta. E que se tornam extremistas diante da incompreensão e revolta de toda uma sociedade.  

É por isso que um vídeo como esse se faz necessário, e que os links de matérias e reportagens linkadas abaixo, igualmente. Ou até mesmo um texto picado e mastigado como esse. Por mais que eu saiba que se você chegou até aqui, caro leitor, dificilmente replica pensamentos como esse, precisamos reconhecer a amplitude e complexidade de um tema como a filosofia desse grupo radical. E de que ainda pouco entendemos sobre ele. A formação e ascensão do Estado Islâmico continua pouco compreendida por teóricos, especialistas e líderes das potências que fazem frente a organização. E também por nós. 

E ainda que toda essa pesquisa e estudo não contribua com nenhuma solução para o problema, ao menos, não aumenta e amplifica ele. Não reproduz inverdades. E isso, hoje, já é muita coisa.  

Abu Bakr al-Baghdadi, o atual líder do autoentitulado Estado Islâmico, em arte feita pela revista Time em 2015

Para entender mais sobre o Estado Islâmico

Indicações do Mizanzuk, tiradas do texto sobre o vídeo

Livro “Refuting ISIS” (em inglês)

Matéria do The Intercept sobre o objetivo do Estado Islâmico em eliminar a “Zona Cinzenta” no Islamismo

[Vídeo] Why Do ISIS And al-Qaeda Hate Each Other?

[Vídeo] ISIS vs. al Qaeda: The Jihadist Divide

[Vídeo] What’s the difference between ISIS and Al Qaeda?

[Vídeo] Matéria da Vice em Territórios Ocupados pelo EI

Minhas indicações

How a Secretive Branchof ISIS Built a GlobalNetwork of Killers, do New York Times

18 things about ISIS you need to know, do Vox

O mistério do Estado Islâmico, traduzido pela revista piauí

Obs.: vale lembrar que o intuito dessa conversa é abrir caminhos e entendimentos. O debate é importante, mas com a vontade de ampliar e não a de reduzir, cercar ou fechar o papo. Comentários islamofóbicos, antissemitas, anticristãos e antiárabes serão automaticamente apagados. "Mas como eu vou assuntar um tema cascudo como esse?". Basta ler este texto aqui.


publicado em 19 de Agosto de 2016, 00:00
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Bruno Pinho

Estagiário do PapodeHomem e estudante de jornalismo.


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