"Vencer na vida" não existe

Na vida, querer vencer é o pior jeito de jogar

Quando eu era bem mais jovem, lá no meio dos anos 90, as faltas de luz eram bem frequentes. Nossa diversão normalmente dependia de energia elétrica, seja para alimentar a televisão ou para enxergar as cartas do jogo de baralho. Sem luz, o melhor era sair na rua e se juntar às outras pessoas, colocando o papo em dia, fazendo fogueiras e contando histórias que não nos deixariam dormir à noite.

Há alguns dias aconteceu algo parecido, mas ao invés de energia elétrica, ficamos sem conexão com a internet. Essa é uma versão moderna e um pouco mais cruel do antigo problema da falta de luz. Digo mais cruel porque os aparelhos continuam funcionando, mas sem internet são apenas caixas luminosas, sem muita utilidade. Sem internet não tinha Netflix, videogame ou o mágico mundo do Youtube.

A solução para esse problema foi desempoeirar a caixa do banco imobiliário que comprei lá em 2010, jogado apenas uma vez na mesma época. As regras do jogo são simples, vence quem falir todos os outros jogadores, assumindo monopólio da cidade hipotética.

Em jogos de tabuleiro, é comum ver a seguinte dinâmica em ação.

Quando a partida começa, todos estão igualmente empolgados. Logo após as primeiras rodadas, os ânimos passam a se alterar. Quem está ganhando vai ficando mais excitado e elétrico. Quem está indo mal começa a desanimar e vai se retraindo, perdendo a vontade de continuar.

Para o propósito de ganhar, o competidor está disposto a ver as outras pessoas infelizes e até cometer alguns excessos no caminho, fazendo chacotas e se gabando ao longo da partida. Num jogo onde existem apenas duas possibilidades, a felicidade do vencedor é alicerçada pela frustração daqueles que não conseguiram chegar lá. É assim que funcionam os “jogos finitos”, o objetivo é ser o vencedor.

Lendo assim, pode parecer estranho, mas essa é a mesma mentalidade que carregamos para nossas vidas.

Um estudo realizado na Universidade da Califórnia organizou voluntários para partidas de banco imobiliário, mas fazendo algumas modificações na regra. O jogo garantia quem seria o vencedor desde o começo, sem dar chances para o adversário.

A partida acontecia entre dois jogadores. Um deles começava com menos dinheiro e usando apenas um dado, podendo andar metade das casas que o outro, com dois dados, poderia andar. O voluntário “pobre” também recebeu apenas metade do salário que o “rico” ao final de cada rodada.

O jogador que iniciou com vantagem tornou-se mais efusivo ao longo da partida, comendo mais da comida grátis disponível e falando mais alto que seus adversários. Ao final do jogo, quando perguntado se mereceu vencer, sua posição era firme: ele se acreditava merecedor por ter uma estratégia superior. Para o grupo que começou com mais dinheiro e oportunidades, o detalhe da regra não parecia influenciar, tudo se deu por mérito pessoal.

Jogos Infinitos, uma nova possibilidade

Agora imagine um formato de jogo onde não conseguimos apontar um vencedor, onde as barreiras temporais são removidas, não sendo possível dizer quem ganhou ou por quanto tempo o jogo está rolando. Um modelo que transcende a vida e a morte, que vai além do que somos, ou que conseguimos projetar para o futuro.

É assim que funcionam os chamados “Jogos Infinitos”.

Fomos criados por nossos pais com a crença de que precisamos vencer na vida. Se não passar de ano, é um perdedor. Mas se for aprovado em medicina, certamente é um vencedor. Raramente te lembram que, se acontecer algum problema no caminho e dessa vez não der certo, ano que vem está aí. Pode até representar um pequeno atraso, mas ninguém vai morrer por conta disso, a bola continua em campo.

Ter uma figura definitiva, seja o vencedor ou o perdedor, implica que o jogo termina naquele ponto, e como demoramos para descobrir, não é assim que a vida funciona. Depois de entrar na faculdade, uma nova rodada começa, novos problemas surgem. Um emprego ruim não significa ser um perdedor, além do mais, pode ser a porta de entrada para outras oportunidades melhores. Assumir que alguém se deu bem ou mal baseando-se num pequeno evento, num curto espaço de tempo, é simplificar demais algo muito mais complexo.

Procure qualquer escritor famoso e veja quantas rejeições teve antes de aceitarem publicar o primeiro manuscrito. Stephen King teve seu primeiro livro rejeitado 30 vezes, hoje já vendeu algo em torno de 300 milhões de cópias. Steve Jobs chegou a ser demitido da própria empresa, hoje é o um ícone da tecnologia e da inovação. Para cada pessoa, se olharmos em momentos diferentes, podem ser considerados vencedores ou perdedores, só que no fim, pouco importa, porque o jogo ainda não acabou.

O jogo infinito também é jogado para os outros

A base do nosso conhecimento científico veio de pessoas que não estão mais aqui, e o que está sendo construído agora será herdado por aqueles que ainda estão por vir. O mesmo serve para nossas obras de artes, cultura, tradições e até mesmo a genética. Mesmo em formas de vida bem primitivas, o instinto mais natural é sacrificar a própria vida para garantir a sobrevivência dos genes.

Quando nos agrupamos em tribos, milhares de anos atrás, buscávamos uma forma de garantir que todos fossem capazes de seguir juntos. Quando ainda éramos caçadores-coletores, já existia um traço de que o importante não é a supremacia do mais forte, mas que trabalhando juntos todos chegavam mais longe.

Quando mudamos a forma como enxergamos a realidade, muita coisa deixa de ter importância. Deixamos de lado a postura de competidores e assumimos um olhar contemplativo. Estamos aqui como parte de algo muito maior, apenas deixando nossa contribuição e, quando formos embora desse mundo, o jogo continuará sem nós.

Ouvimos o tempo todo pessoas questionando se são velhas demais para começar algo novo, mas quando não existem vencedores, pouco importa sua idade. O que importa é garantir que ainda está participando do jogo.

Precisamos deixar de acreditar em falsas dicotomias, num cenário onde um precisa perder para o outro ganhar. Considere tocar um instrumento musical, por exemplo. Não existe apenas a divisão “não tocar” ou “ser o Jimi Hendrix”, podemos tocar por toda nossa vida, pelos benefícios que nos trazem, pelo sorriso que tiramos dos olhos daqueles que nos ouvem, sem que para isso seja necessário se tornar o maior guitarrista de uma época.

Nas artes marciais é comum ver as pessoas que “não levam jeito” se frustrando e abandonando algo que gostam bastante, simplesmente porque sentem que não serão tão bons quanto os supostos “campeões”. Quando pensamos no jogo infinito, os valores mudam de direção. Passamos a treinar porque gostamos, porque somos parte de uma tradição e ajudaremos outras pessoas a alcançarem a mesma satisfação que encontramos ali.

Ao deixar de jogar o jogo finito e partir para o jogo infinito, nos tornamos mais humanos.

Nos encontramos como parte do universo, da construção do futuro. Entendemos melhor nosso pacto social, nos conectamos com os animais, com a natureza e com nossos iguais. E aí, a única coisa que importa é que o jogo não pode parar.


publicado em 05 de Abril de 2016, 12:02
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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