Pilates para secar o abdômen. Corrida para turbinar a bunda. Uma dieta low-carb que promete eliminar os quilos a mais. Gel redutor anti-celulite. Detox para o verão. Inibidores de apetite. Cremes anti-estrias. Balas de colágeno. Cinta redutora de medidas. Injeções de carbono para queimar gordura localizada.
Poderia ficar algumas horas citando invenções cosméticas e farmacêuticas criadas para entrarmos em forma e conquistarmos o tão sonhado “corpo ideal”.
Desde que me entendo por gente, lembro de ser constantemente avisada por revistas, comerciais e novelas do quão gorda e feia eu sou – e de que existem muitas possibilidades no mercado para solucionar, com rapidez e eficiência, esse meu “problema”.
Parece um exagero? Uma sugestão: pergunte para cinco mulheres de seu convívio próximo se elas estão felizes com o peso e o corpo atual, ou se estão de dieta, se já fizeram muitas, se planejam alguma, quantos quilos gostariam de perder e o que mudariam em seus corpos. Garanto que você vai se assustar com as respostas.
A maioria com quem convivo se consideram gordas ou tem alguma forte objeção estética com suas próprias figuras. E mais: acham isso completamente natural. O assustador é que são mulheres lindas – inclusive jovens e magras – convencidas de que seus corpos são errados, feios, desajustados.
Os padrões são inalcançáveis. O papel deles é o de nos manter sempre insatisfeitos, numa corrida eterna.
A existência de padrões de beleza não é nenhuma novidade. Desde muito antes da minha avó existe o ideal de corpo bonito, o rosto admirável, o conjunto da obra que todo mundo quer ter. E aí a grande questão. Quem é que cria o modelo?
Hollywood? Interesses corporativos das indústrias farmacêuticas? A “mídia”?
Beleza e estética são construções sociais. Se modificam ao longo do tempo e de acordo com a cultura de uma determinada sociedade. Algumas décadas atrás, no Brasil, mulher rechonchuda era sinônimo de beleza e vitalidade. Hoje, as magras e gostosas ganham os holofotes. No Paquistão, Tailândia, Coréia do Sul, Hong Kong, Malásia e Índia, bonito é ser branco, com o uso de cosméticos alvejantes que brutalizam as peles. Na Mauritânia, África Ocidental, quilos a mais são sinal de status e riqueza para as mulheres.
Daí, a libertadora verdade: não existe uma entidade chamada padrão estético que sobrevive à parte de nós.
Somos nós os criadores dos padrões que tanto nos aprisionam.
Somos nós que compomos o mercado médico-farmacêutico, a indústria da moda, do cinema. Somos nós lá, ocupando todos os cargos das grandes empresas da mídia impressa. Eu, você, seu amigo magrela e sua prima gordinha.
Nós que inventamos a pauta, aprovamos, escrevemos, fotografamos a modelo esquálida, retocamos a única celulite encontrada na nádega esquerda com photoshop, revisamos e editamos a matéria, imprimimos, vendemos.
Nós que compramos a Revista Nova com a matéria de capa “Corpo Perfeito nesse fim de semana” e fazemos a dieta macabra com as amigas.
Somos todos nós que construímos esses padrões aprisionantes e corroboramos com eles.
Herdamos e os perpetuamos, passamos para frente, por gerações e gerações.
Aprendemos na escola, em casa, com os amigos e com a publicidade qual é o corpo ideal, o cabelo ideal, o formato de rosto ideal. E então seguimos, muitas vezes e sem perceber, reproduzindo esses padrões, sustentando ideais ilusórios e adotando comportamentos muitas vezes violentos para alcança-los.
E as mulheres ainda são as que mais sofrem com isso.
Meninas são ensinadas, cada vez mais cedo e de diversas formas, muitas delas silenciosas e travestidamente coerentes, que seu maior valor está na aparência. Que é necessário manter uma rotina intensa de atividades físicas e dietas rigorosas. Que manter-se magra e comer bem são sinônimos. Que ser bonita (dentro dos padrões de beleza) é crucial para navegar bem no mundo.
Continuamos recebendo essas mensagens ao longo de nossas vidas, repetidas vezes, sem nem nos darmos conta. Incorporamos todas elas e agimos como se estivesse tudo bem.
Mas não está.
Padrões sempre existiram, e seguirão existindo enquanto nos afastarmos e projetarmos toda a responsabilidade de sua existência para os outros, entes despersonalizados, “horríveis e cruéis”, como a mídia.
Seguirão existindo enquanto nós os replicarmos, das mais variadas formas.
Sendo duros e impiedosos com a nossa própria aparência. Correndo atrás do “prejuízo” através de uma dieta de 5 dias de suco verde e banana. Toda vez que não percebemos a falta de diversidade e tamanhos de corpos nas mídias. Sempre que julgarmos a gorda de biquini na praia e sentirmos pena do gordinho comendo um pacote de biscoitos recheados e se lambuzando no metrô. Quando apontarmos a magrela no shopping para a nossa amiga ao lado, com a frase: ela deve ter anorexia, coitada.
É exatamente o que fazemos hoje. Estamos cheios de hábitos e comportamentos que discriminam e excluem pessoas com o corpo fora dos padrões.
Acabamos presos numa lógica que nos torna, ao mesmo tempo, os prisioneiros e os carcerários.
Um começo: olhar para dentro
Precisamos nos desfazer das amarras internas.
Sair das prisões que nós mesmos criamos através dos nossos padrões de comportamento. Ressignificar nossa relação com o corpo. Entender que ele é, antes de qualquer coisa, um instrumento de aprendizagem e que defender um único tipo de corpo é negar a natureza humana, a sua diversidade e todas as narrativas contadas pelos formatos mil que transitam pelo mundo afora.
É fundamental, depois de perceber as sutilezas dos modelos que estão arraigados fundo, lá dentro de nós, dar abertura para diferentes histórias serem contadas por corpos reais e existentes.
Olhar ao redor. Saber observar e contemplar o que existe, o que é verdadeiro.
Perceber que se aceitar e deixar ser aceito não é só o primeiro passo rumo à liberdade, mas o início de uma grande revolução.
“Uma mulher não pode tornar a cultura mais consciente apenas com a ordem de que se transforme. Ela pode, no entanto, mudar sua própria atitude para consigo mesma, fazendo com que projeções desvalorizadoras simplesmente ricocheteiem. Isso ela consegue ao resgatar seu corpo.
Ao não renunciar à alegria do seu corpo natural, ao não “comprar” a ilusão popular de que a felicidade só é concedida àqueles de uma certa configuração ou idade, ao não esperar nem se abster de nada e ao reassumir sua vida verdadeira a plenos pulmões, ela consegue interromper o processo.”
–Clarissa Pinkola Estés, em Mulheres que correm com os lobos
Quando olharmos para nós com mais compaixão, vai ser bem mais fácil fazer o mesmo com outro, e deixá-lo existir em todas as formas, condições e corpos possíveis, sem tanto sofrimento.
Espaços de diálogo
Estamos longe de ter boas respostas, respostas únicas, para a libertação dos nossos corpos. O que temos são muitas perguntas.
Se temos a compreensão de que são pessoas que constroem padrões, e eles nos aprisionam e violentam, por que não conseguimos romper o fio condutor dessas confusões? E por qual motivo esses padrões são tão mais severos com as mulheres? Será que é possível quebrar o ciclo?
Para encontrar caminhos, precisamos também, com urgência, ouvir relatos sinceros sobre essas aflições e abrir espaço para conversas honestas.
Foi pensando nisso que a galera do Cinese juntou, no último sábado, uma rede de mulheres que já estão explorando o assunto há algum tempo, como a ilustradora Evelyn Negahamburguer, do Projeto Beleza Real, e a Jeanne Callegari, para organizar uma roda de conversa sobre prisões estéticas. A ideia é começar a construir espaços de diálogos abertos e profundos sobre essas amarras ligadas à beleza e gênero. Esperamos que esse seja o primeiro encontro de muitos.
Que tal, homens e mulheres, construirmos juntos esses espaços?
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