Sangue, suor e asfalto

O homem ainda tremia. Faca na mão e ensangüentado até o branco do olho. Sem qualquer sinal de arrependimento, foi contido pela polícia. Não tinha nada a dizer. A cena já o fazia. Não sentia nem o peso das algemas, estava leve pelo descarrego da vingança, a olhos vistos por todos no quarteirão. Na viatura, reconstruiu cada momento vivido nas últimas 6 horas. Saiu para visitar a mãe. Deu um beijo na esposa. Ambas não se entendiam. A velha tinha o costume de criticá-la, que não era flor que se cheirasse, a mulher tinha o costume de ignorá-la, "estava caducando".

Mulheres...

Censurou a mãe e voltou para casa antes, aborrecido. Acenou para os meninos que brincavam na rua. Abriu a porta. Barulho estranho. A esposa saía do quarto descomposta, com um brilho estranho nos olhos, trancou a fechadura. Sentiu o cheiro de cigarro  em casa, onde ninguém fumava por causa das crianças. Mandou a mulher abrir a porta. Como ela não se mexeu, arrombou. Só deu tempo de ver o rapazote fechando o zíper da bermuda e tentando pular a janela. A descarga de hormônios e sentimentos impulsionou o restante.

A mulher tentou impedir tudo, puxando o marido pelo braço, pela camisa, pelos pelos, mas logo caiu no meio do corredor, gritando, com o punho quebrado. O homem correu até a saída, antes a mão direita esticou até a mesa de jantar e catou uma faca simples, serrilhada.

Não jogava bola há 10 anos, mas a fúria serviu de combustível para cada músculo de ambas as pernas. Alcançou o rapaz, derrubou-o com um pontapé por trás de um dos joelhos, perdeu o próprio equilíbrio  e ambos rolaram no meio da ruela levantando poeira, com a vizinhança ao redor saindo das casinhas e as crianças chorando assustadas.

Rasgou o rosto do infeliz.

Não conseguia dirigir-lhe uma palavra sequer. O próprio ainda alcançou-lhe um testículo com o joelho jovem e conseguiu fugir, mas não conseguiu nem atravessar a avenida inteira. Subestimando o orgulho de um marido traído, parou para respirar no canteiro central. Logo foi puxado de volta e recebeu uma, duas, três, incontáveis facadas que tingiam o asfalto de sangue, em pleno sol das 14h, em meio às buzinas dos carros e aos pedestres curiosos, alguns já com celulares a postos, pois a internet não tem tempo a perder.

O jovem, cego e fraco pelo brilho de lâmina, já não sentia dor, mas apenas esvaziado e incrivelmente sozinho, sob a luz escaldante, sobre um mar de concreto, em meio a uma multidão de carro e de gente. Pensou no abraço da mãe, no gosto da cerveja. Pensou Nela, tão linda... as últimas lembranças. Aquela expressão “passou um filme na minha cabeça” era mesmo real. Imaginou um som de ambulância, perdeu os sentidos. Na contramão, atrapalhando o tráfego, o público, o sábado. Eu lembrei da música. Ele não.

Foto estritamente ilustrativa, não tendo ligação real com a ficção ou a experiência vivida pela autora

***

Texto fictício sobre uma real briga em frente ao shopping, cuja espectadora aqui não consegue parar de pensar em outros 1000 motivos para a cena de 30 segundos que viu. Nem de cogitar outros 1000 finais, já que não teve coragem de ficar pra saber como tudo terminou.

p.s1: Sim, disquei 190.
p.s2:
Espero ter visto tudo errado...


publicado em 01 de Agosto de 2012, 15:26
347d0a9d7c20b84881f9ab4e0965cc0b?s=130

Iumy Nayara

20 e poucos anos, do tipo pequena, insone e cheia de planos. Estuda medicina, Fortaleza e o cotidiano; lê romances, curte a comédia trágica da vida real e não desperdiça lembranças. Escreve sobre tudo isso e adora.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura