Rumi: amor sensual e devoção pelo amado

"Que o amado se desgrace, seja louco, perca a cabeça. // Um sóbrio se preocuparia com um final infeliz. Que o amado seja o que é."

De nossa perspectiva pode parecer extraordinário que o amor seja, em tantos aspectos, uma invenção cultural.

O beijo, a icônica e erótica obra-prima de Gustav Klimt, feita em 1908

É claro que animais praticam coisas que podemos descrever como amor, ainda que em geral, no que concerne à sexualidade, costumeiramente separemos aquela atividade dita “instintiva” de nossos ideais mais propriamente humanos, e assim por diante. Pode ser especismo, mas também separamos em nós mesmos a atividade mais instintiva daquela que tem significado, e as reconhecemos distintas.

Chegamos ao ponto de imputar a inexistência de um fator puramente determinístico na relação filial de mamíferos: é tudo oxitocina, “gene egoísta”, o escambau.

São os bichos – e hoje cada vez mais nós mesmos democraticamente nada mais do que bichos –, segundo a ideologia prevalente, todos meros robôs determinísticos de teleologia arbitrária e aleatória. E, sem obstar a uma quiçá possibilidade de “cultura animal” – e ela certamente existe – podemos assumir que na ideia de cultura, por mais também evolutiva e determinada que seja, repouse um último bastião do espírito.

E, claro, a cultura aparentemente também não nos deixa muitas liberdades – se é que por espírito nos referimos a autodeterminação e gênio existencial, daimon. A existência inserida num jogo próprio de costumes pode expressar um espírito humano, criado à imagem e semelhança de um deus tribal.

Com a subjetividade radical de um Sócrates ou Jesus – um respondendo ao demônio individualista em contraposição ao costume, e o outro roubando o fogo celestial na equiparação absoluta com o deus tribal, incorporando ao mesmo tempo que transcendendo os costumes – fazemos do amor história. Estes homens só existem para nós como indivíduos porque foram superlativamente amados.

Esse amor transcendeu o determinado e fez-se verbo, penetrando a história com o texto.

E se o caminho da sublimação sexual na adoração pelo ídolo – no qual o regozijo pela paixão na cruz em nada difere do êxtase da beatlemaníaca – foi muitas vezes o caso, o caminho oposto também se deu. Com o nascimento do sujeito, nasce o amor romântico, em sua primeira versão como amor cortês. Esse é o amor que desobedece aos costumes terrenos e encontra no outro a pura representação da luminosidade transcendente: um amor profético e um mito criado, o cristianismo como desculpa para o exagero a dois.

No oriente, na visão tântrica, o obstáculo supremo à iluminação é justamente o grande deleite do praticante. Aquilo que desestrutura totalmente o samadhi – a absorção meditativa – é o modo mais rápido de progresso espiritual, sem o qual a prática não se aprofunda. Na transmutação tântrica, e na subversão dos valores da ilusão reificada, não é o deleite o obstáculo: o obstáculo que é um deleite. Quanto mais perturbadora a experiência, mais interessante.

E assim é a peculiaridade do laço afetivo em sua efemeridade necessária; sua glória duramente temporal gozando sub specie aeternitatis no útero terno da existência. Donzelas confiando o nome honrado de suas famílias a cavalheiros forasteiros em casamentos secretos à noite na floresta negra, e toda a infinita bobeira da preliminar infinda de um flerte altamente ritualizado e simbólico – filigranas em lenços, duelos, o balcão de Julieta, etc. E os infindáveis sonhos e fantasias literários que refinam essa punheta espiritual de ânsia por homem num cavalo branco.

A construção de uma ludicidade que faz de todos ridículos, ludicrous: o doce jogo de crianças (por recusarem o cinismo) que se fazem adultos na ressaca inevitável de sua entrega mútua a um ideal impossível – mas que produziu faísca, que se fez carne no sentido mais carnudo da coisa. Sonho que se sonha junto e vira carne, ou que, por outra perspectiva, realiza a eucaristia, a transubstanciação da carne em puro tecido de sonho.

Para Kant – e nunca ninguém jamais usou balde de água fria textual tão bom como as palavras “para Kant” – o sexo sempre degrada um dos envolvidos, quando não degrada aos dois (ou mais; embora, não sei, acho que Kant não chegou a examinar o poliamor). Se isso ocorre sempre, podemos discutir, mas que pode ocorrer, sabemos que sim. Mas como o sexo degrada? O que quer dizer objetificar ou usar alguém?

Aqui entram todos os clichês sobre amor. Tirar um sarrinho mútuo, qual o problema? Adultos consensuais, o que pode estar errado com isso? Fornicação é papo de Bíblia, e Kant deve ter morrido virgem.

Sexo con amor, Los Pettinellis, trilha de um filme que na verdade é quase uma pornochanchada

Ainda assim na medida em que um, ou os dois, não usufrui(em) o tesão da circunstância plena de ser sonho “não cínico” do outro, temos a “mera atividade animal”, o que é natural, até “saudável”, mas que equivale a nos reduzir a animais.

Na cama: o beijo, essa obra de Henri de Toulouse-Lautrec, concluída em 1892, captura duas prostitutas em um momento de amor lésbico. Após pintar vários casais femininos se aconchegando na cama, Toulouse-Lautrec supostamente disse, "Isso é melhor que qualquer outra coisa. É a epítome do deleite sensual."

Nada de errado com isso, na medida em que podemos elevar os animais a também seres dotados de cultura, da mesma forma que antropomorfizamos nossos bichos de estimação. Mas de modo geral fazemos isso apenas com alguns mamíferos, ou um ou outro lagarto ou tartaruga (que nos surgem como um tanto mais “autistas”, em sua reciprocidade), nunca com insetos, anêmonas, urubus ou o que mais valha.

Nosso especismo tem limites claros: tratar alguém como tratamos uma barata, ou gado de abate não é respeitoso. Por isso degrada.

Todos hão de convir que há pelo menos certa honestidade na degradação mútua – na objetificação plenamente recíproca, quando ela acontece.

Porém, como a experiência nos mostra, nós não temos grande clareza sobre nossas próprias motivações, que dirá as do outro. E assim ainda que Kant possa ter feito uma generalização muito ampla, e achemos caretinha alguém vir tentar tolher – mesmo que meramente conceitualmente – nossas possibilidades sexuais com considerações de cunho moral, isso significa, além do consenso, a capacidade de se engajar em sexo como ser humano, no que é próprio de ser humano, além de mamífero. Sem dúvida algo em que prestar atenção.

Ou há outra opção? Me joga na parede e me chama de lagartixa. O regozijo na degradação como forma última de violar o jogo dos costumes, é claro, está sempre presente como possibilidade. Porém, na mesma medida em que abrimos essa porta, abrimos a porta para o danoso jogo da não consensualidade, ou para o extremo ritual – uma invasão dos costumes – no uso de senhas e limites contratuais previamente estabelecidos. Mecanizamos o processo novamente, apenas em outro aspecto.

No outro extremo, o do amor que nos faz humanos, e portanto divinos, está Jalaluddin Rumi. Suas insuperáveis poesias devocionais misturam adoração pelo mais alto com o ardor por um amigo – ou mestre espiritual –, com até conotações homoeróticas.

O texto é, tantos séculos depois, nada estranho ou difícil. Rumi expressou o amor e a devoção não mecânica e sensual de um mundo pleno de sentido. Alguns exemplos:

Rumi

Há um sorriso e uma gentileza interiores.

Quando aprendi o nome e descobri o endereço disto,

fui até onde você vende perfume.

Implorei que não me perturbasse tanto em minha ânsia.

Venha brincar! Flerte mais naturalmente.

Ensine-me a beijar.

No chão uma coberta estendida,

uma chama robusta e bem contida,

dourando sementes de cominho,

estou dentro com minha alma.

 

Quando está frio e chove,

você é mais belo.

 

E a neve me leva para mais perto de seus lábios.

O segredo interior, que nunca nasceu,

você é esse frescor, e agora estou com você.

Não posso explicar as idas e vindas.

Você chega repentinamente,

e novamente não estou em lugar algum

dentro da majestade.

 

Há algum beijo que queremos

com a vida toda, o toque do espírito no corpo.

A água do mar implora para a pérola que

rompa sua concha.

E o lírio, com que paixão

busca um querido selvagem!

 

À noite abro a janela e peço que a lua venha

e aperte seu rosto contra o meu.

Que respire em mim.

 

Feche a porta da linguagem e abra a janela do amor.

A lua não usa a porta, apenas a janela.

 

Que o amado se desgrace, seja louco,

perca a cabeça.

Um sóbrio se preocuparia com um final infeliz.

Que o amado seja o que é.


publicado em 02 de Outubro de 2015, 10:04
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura