Prisão verdade

A Verdade não é um valor inquestionável, mas sim uma ferramenta: útil em algumas ocasiões, inútil em outras

As verdades que carrego dentro de mim foram ensinadas por pessoas que erravam e mentiam. Quando verbalizo uma dessas verdades, estou canalizando suas opiniões e seus preconceitos.

Por isso, hoje, em vez de tentar aprender novas verdades, busco me livrar das antigas.

Quando encontro uma Verdade em meu cérebro que não sei de onde veio, eu pergunto: “tenho certeza disso?”

Não duvidar, não acreditar

Quando ouvimos um causo, temos a opção de acreditar ou duvidar, mas não há nenhuma palavra para a posição intermediária.

Diálogo que acontece comigo:

"Então, acreditou nessa história cabeluda que o Felipe acabou de contar?"

"Não", respondo.

E minha interlocutora:

"Arrá, eu também duvido, é óbvio que isso nunca aconteceu, esse cara é um mentiroso de marca maior!"

"Espera, eu não disse que duvidava. Eu disse que não tinha acreditado."

"Ué, e não é a mesma coisa?"

"Não. Eu não acreditei, mas também não duvidei. Nem engoli nem questionei. Nem aceitei a história como tendo realmente acontecido, nem rejeitei como nunca tendo acontecido."

Algumas vezes, minhas interlocutoras ficam confusas. Outras, me desafiam:

"Você o quê, então?!"

"Eu nada. Desde quando tenho a obrigação de me posicionar criticamente quanto à veracidade de tudo o que escuto?"

 

Nem no lixo, nem no pedestal

Quando digo que a Verdade é uma prisão, não estou dizendo que ela é inútil, nociva ou que deve ser jogada fora.

Defender que a Monogamia é uma prisão, por exemplo, não é uma crítica o casal que escolheu viver seu relacionamento de acordo com o pacto monogâmico, mas sim ao discurso hegemônico da nossa sociedade, que vende esse pacto como sendo a única maneira de organizarmos nossos relacionamentos e nunca abre espaço para as possibilidades alternativas.

A Verdade é uma prisão porque ela é igualmente vendida como um valor inquestionável, intrinsecamente positivo, que devemos sempre buscar, respeitar, valorizar.

* * *

Quando a vendedora diz que aquele carro só foi usado por uma velhinha para ir ao parque aos domingos; quando a candidato à vaga de emprego diz que é formada em Engenharia, quando a policial militar garante que a pessoa favelada que matou era uma bandida, é importante determinarmos a Verdade dos fatos.

Tão importante, aliás, que nossa sociedade criou uma série de mecanismos institucionais pensando exatamente nesses casos: odômetros, diplomas, julgamentos. Todos, cada um do seu jeito, instrumentos para medir a verdade dos fatos. Todos, cada um do seu jeito, passíveis de serem manipulados, falsificados, adulterados.

Então, não, a Verdade não é para ser posta no lixo, mas também não é para ser colocada em um pedestal.

Um martelo não é "bom" nem "ruim". Não faria sentido falar de um martelo nesses termos.

Se quero colocar um prego na parede, um martelo é útil. Se quero trocar uma lâmpada, um martelo é inútil.

A Verdade não é um valor, ela é uma ferramenta.

Algumas vezes, é útil. Em outras, só atrapalha.

A empatia da ficção

O livro Um Milhão de Pedacinhos foi um dos maiores fenômenos editorais da última década. A história da degradação e posterior redenção de um viciado em drogas inspirou milhões de pessoas por todo o mundo.

Algum tempo depois do lançamento, entretanto, o autor foi desmascarado como um grande mentiroso. Aparentemente, quase nada na história era verdade. Tudo foi distorcido ou exagerado. Sua agente literária o abandonou, sua editora cancelou seu contrato, sua maior fã, uma apresentadora de televisão, o renegou no ar, ao vivo. As mesmas milhões de pessoas por todo o mundo se sentiram traídas.

Eu não li Um Milhão de Pedacinhos. Não sei se é bom ou não. Mas, para as pessoas que leram e gostaram, para as pessoas que se sentiram tocadas pela mensagem, para as pessoas que aprenderam alguma coisa com o livro, que diferença faz tudo ter sido inventado ou não?

Minha irmã, por exemplo, não consegue ler ficção: não lhe desperta nenhuma empatia. Diz ela:

"Por que eu iria me interessar em saber como nunca se desenrolou uma situação que nunca aconteceu entre pessoas que nunca existiram?"

Mas será que a mensagem de Dom Quixote ou de Policarpo Quaresma deixa de ser verdadeira somente porque os personagens nunca existiram?

De certo modo, Antígona e Capitu talvez sejam muito mais verdadeiras e reais — ecoando pelos séculos, existindo em inúmeros continentes, falando dezenas de línguas, tocando inúmeras vidas — do que nós, pessoas pretensamente verdadeiras e reais, mas tão restritas por nossas limitações físicas, geográficas, cronológicas.

A ficção se utiliza do artifício e da mentira para transmitir verdades mais verdadeiras do que seria capaz a própria verdade.

Esse texto que você está lendo também é um texto de ficção.

A Verdade sobre Capitu

Dom Casmurro, romance publicado por Machado de Assis em 1899, conta a história de um adultério. Ou não.

Capitu é casada com Bentinho, cujo melhor amigo é Escobar. Um belo dia, Escobar morre e, poucos meses depois, Capitu dá a luz a um filho que é a cara do falecido. E aí?

* * *

Durante mais de meio século, leu-se Dom Casmurro como um romance de adultério. Nunca houve dúvida quanto à infidelidade da sem-vergonha Capitu. Somente em 1960, em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, Helen Caldwell levantou publicamente a questão: mas será que era?

(Não por acaso, a primeira pessoa a levantar essa possibilidade era não somente mulher, mas uma mulher estrangeira.)

Trinta anos depois, quando li Dom Casmurro no Ensino Médio, nossa professora fez o tradicional julgamento de Capitu. A maior parte da turma a considerava inocente (inclusive a professora) e um grupo menor defendia sua culpa. Sobrei eu pra ser juiz, o único que não tinha opinião formada.

Meu papel era somente julgar qual dos lados tinha levantado mais fatos e argumentos para provar sua opinião. As discussões foram acaloradas; amizades, desfeitas. Houve gente me acusando nos corredores de "anti-Capitu (ou pró-Capitu) desde criancinha".

Como aspirante a escritor, ver tantas adolescentes com tantas leituras tão divergentes e apaixonantes do mesmo texto só comprovava os efeitos concretos que a ficção exercia sobre a realidade.

Anos e anos depois, já no doutorado de literatura, lemos Dom Casmurro de novo. Dessa vez, o tom foi outro. Nenhuma das minhas colegas de sala teve a temeridade de sugerir o adultério de Capitu, mas falou-se bastante do falocentrismo da literatura canônica.

Um comentário que se ouviu muito no meu doutorado foram variações de:

"Como tanta gente pôde ler esse livro tão errado tanto tempo? É óbvio que o livro é sobre o ciúme louco e obsessivo de Bentinho, não sobre uma traição (que nunca existiu) da pobre Capitu! É tão óbvia a reticência do autor quanto à traição de Capitu que é simplesmente impossível ler o romance como um simples livro sobre adultério!"

Mas pode-se argumentar que o fato de o livro, seu autor e suas pessoas leitoras estarem inseridas em uma tradição literária falocêntrica é que torna ainda mais provável o tal adultério.

Afinal, se duas gerações de pessoas ao longo de sessenta anos viram o adultério de Capitu como autoevidente, então por definição o livro no mínimo permite essa leitura.

Dizer o contrário equivale a arrogantemente imputar uma cegueira imbecil às pessoas leitoras do passado.

* * *

Ainda usando o romance de exemplo, as pessoas defensoras de Capitu alegam em seu favor a reticência de Bentinho: se houvesse realmente alguma prova concreta do adultério, ele teria dito e feito fanfarra. Se não fala nada, é porque não há o que dizer.

Já as primeiras pessoas a ler o livro talvez pensassem como José Veríssimo, um dos principais críticos literários da época, em seu História da Literatura Brasileira (1915):

"Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos."

E então, pergunto eu, Bentinho silencia porque nunca houve adultério e não havia o que dizer, ou porque Machado é um "autor extremamente decente" e não havia porque dizer com todas as letras o que já era tão óbvio que tinha acontecido?

Nunca saberemos. Não há possibilidade de haver uma resposta certa. Cada argumento sempre vai cortar para os dois lados.

Mais importante, que diferença faz?

* * *

Vai ver nem o próprio Machado sabia.

Vai ver o romance não é nem sobre uma adúltera safada que trai um pobre burguesinho (a certeza do adultério), nem sobre um homem obcecado por ciúmes que persegue sua inocente esposa (a certeza do não-adultério).

Vai ver é um romance sobre a dúvida.

Vai ver é um romance sobre como essa nossa busca obsessiva e pueril por uma tal Verdade com V maiúsculo pode destruir nossas vidas.

 

As pessoas mentem

Fui um adolescente gordo. Sempre que alguém me encontrava, o comentário era o mesmo:

"Puxa, como você emagreceu!"

Aquilo me intrigava. Afinal, eu sabia que não tinha emagrecido.

Desenvolvi várias teorias para explicar esse paradoxo.

Minha preferida era a seguinte:

As pessoas me rotulavam de gordo e pensavam em mim como "aquele gordo". Portanto, quanto menos viam o verdadeiro-eu, de carne e osso, e mais interagiam somente com "aquele-gordo" das suas memórias, mais eu engordava em suas mentes, até que, finalmente, quando me encontravam, eu parecia de fato bem menos gordo do que em suas imagens mentais de mim.

Sustentei essa teoria por muitos anos, bastante orgulhoso da sofisticação meu raciocínio.

Até que um dia me dei conta:

As pessoas mentem.

Mentem mal e mentem bem, mentem por carinho e mentem por malícia, mentem de propósito e mentem sem se dar conta, mas mentem o tempo inteiro.

* * *

Para mim, adolescente de pífio traquejo social, essa foi uma realização importante.

Eu não precisava sempre falar a verdade!

Quando uma pessoa de penteado horrível me pedia opinião sincera, eu podia dizer que "estava lindo"... e nada acontecia!

Deus não me fulminava. A pessoa não enxergava a mentira nos meus olhos. Eu não corava de vergonha. Nada disso.

Pelo contrário, o mundo se tornava um lugar melhor e mais agradável. As pessoas sorriam mais para mim. Eu era convidado para mais festinhas. Parecia mágica.

No ano seguinte, eu já era presidente do grêmio.

* * *

O que mudou minha vida não foi nem a percepção de que mentiam para mim, e nem de que eu também podia mentir de volta. (Quase todo mundo concluiu isso muito mais cedo do que eu!)

O que mudou minha vida foi quando me liberei da obrigação de questionar a veracidade do que as pessoas me diziam.

Vai ver a pessoa achou realmente que emagreci horrores. Vai ver a pessoa achou que sou um gordo disforme e, com a minha corpulência na cabeça e na ponta da língua, soltou o primeiro comentário simpático que pôde imaginar sobre esse tema. Vai ver ela simplesmente se treinou para dizer isso para toda pessoa gorda sem nem pensar.

Vai ver ela gostou sinceramente do meu penteado. Vai ver ela achou meu penteado horrível e falou que gostou dele só porque gosta sinceramente de mim e quis poupar meus sentimentos. Vai ver ela achou o meu penteado horrível, caga pros meus sentimentos, mas falou que gostou dele porque pensa que pode precisar de mim no futuro.

E daí que mintam pra mim? O que me importa? Que diferença faz?

A Verdade não vale nada.

Se não tenho acesso às emoções e pensamentos profundos das pessoas, por que perder tempo interpelando-os?

Só posso interagir com suas palavras e com suas ações.

A verdade como arma

Um amigo me conta:

"Traí minha esposa. Foi só uma vez. Já encerrei o relacionamento com a amante. Estou dedicado ao meu casamento. Ainda assim, sinto essa culpa me comendo por dentro. Não consigo nem dormir. Preciso contar a verdade para minha esposa!"

Mas... por quê?

Meu amigo está sofrendo com razão, pois sabe ter propositalmente violado o pacto monogâmico que estabeleceu voluntariamente com a companheira. O problema é que ele só está pensando em si mesmo: na sua traição, na sua consciência, no seu sono tranquilo, na sua verdade.

Contar a verdade sobre a traição, porém, especialmente se já encerrou o caso e está de novo comprometido com o casamento, serviria apenas para comprar sua paz de espírito às custas do sofrimento dela.

Seria utilizar a Verdade como arma para agredir a esposa novamente, uma nova agressão ainda pior do que a agressão original, que ela nem soube.

O que poderia ser mais cruel e egocêntrico?

Um tesão subindo à cabeça, uma traição ocasional, uma falta de controle momentânea, são todas mais compreensíveis e mais perdoáveis do que essa nova violência, perpetrada assim a frio, tão mais perversa.

* * *

Afinal, que Verdade é essa que tanto valorizamos?

Se a recepcionista do escritório aparece com um penteado (que eu acho) horrível, por que verbalizar essa (minha) Verdade? Serei eu por acaso fiscal dos penteados ruins do mundo?

Vale a pena causar um desconforto mínimo que seja em outra pessoa em nome de uma Verdade trivial dessas?

Se valorizo tanto a tal Verdade, por que não falar a Verdade, digamos, sobre os sapatos (que eu acho) incríveis que ela está usando hoje?

Talvez a melhor maneira de não usar a Verdade como arma seja somente refreando essa nossa ânsia egocêntrica por manifestar nossas "Verdades" não-solicitadas em assuntos que não nos dizem respeito — especialmente sobre os corpos de outras pessoas.

Poucas atitudes são mais verdadeiras do que saber a hora de engolir em silêncio as nossas ó-tão-importantes verdades.

* * *

Vale mais desinstalar programas ruins do que instalar programas bons

Quando nos tornamos pessoas adultas, nossa mente é como um computador que veio de fábrica com vários programas pré-instalados.

Não é nem que todos esses programas sejam lixo, mas também não é que sejam bons só porque foram instalados por pessoas em quem teoricamente confiamos (mães, professoras, amigas, etc) ou porque têm o aval da tradição e do costume.

Concluí que só eu podia ser o juiz de quais programas eu queria que rodassem no meu próprio computador, escolhidos de acordo com as minhas necessidades, personalizados para o meu uso pessoal.

Não queria viver a minha vida no modo default de fábrica.

E se todas as pessoas estiverem erradas?

Minha avó sempre dizia que manga com leite era uma combinação fatal. Um dia, tomei manga com leite e nada aconteceu. Hmm, pensei, vovó estava errada.

Meu padrinho sempre dizia que baiano era tudo preguiçoso. Um dia, fiz um trabalho na Bahia e a sua equipe foi tão trabalhadora quanto qualquer outra. Hmm, pensei, o padrinho estava errado.

O Hugo do 401 sempre dizia que todas as mulheres gostavam de levar um tapa na cara na hora do sexo. Um dia, comecei a namorar e nenhuma das mulheres com quem me relacionei gostava. Hmm, pensei, o Hugo do 401 estava errado.

Meu professor de História do ginásio sempre dizia que o Brasil era um exemplo de democracia racial. Um dia, em uma clínica onde todos os médicos eram brancos e os faxineiros, negros, eu finalmente me dei conta de que não era bem assim. Hmm, pensei, o meu professor de História estava errado.

Pouco a pouco, enquanto eu crescia e prestava atenção ao mundo, esses pequenos exemplos se acumulavam.

Até que, finalmente, a crise de fé já não podia mais ser ignorada:

Se meu pai e minha mãe, minhas professoras, minhas amigas, todas essas pessoas em quem confiei para me ensinar e me formar, estão erradas em tanta coisa que já comprovei e observei... então, como posso confiar em qualquer das outras coisas que me ensinaram?

Na melhor das hipóteses, algumas coisas que me ensinaram estão erradas e outras, certas. (Mas como diferenciá-las?)

Na pior das hipóteses, tudo o que me ensinaram está errado.

Tudo.

* * *

Nesse momento, percebi que nunca mais conseguiria, com a mesma inocência de ontem, responder a qualquer pergunta dizendo:

"Porque meu pai disse. Porque minha professora me ensinou. Porque o padre me contou. Porque fui criado assim. Porque na minha terra fazemos desse jeito."

Nesse momento, percebi que não tinha escolha a não ser correr atrás, por conta própria, de cada partícula de conhecimento que eu quisesse chamar de minha.

Nesse momento, adolescente ainda, comecei o longo e tortuoso processo (ainda em andamento) de me tornar uma pessoa humana adulta pensante.

E se eu estiver errado?

Afinal, se pessoas que me ensinaram tudo estavam erradas em tanta coisa... eu também devia estar errado em muita coisa.

Eu não sabia o que eu sabia.

Dentre as coisas que eu sabia, quais eu realmente sabia?

Dentre as verdades que me transmitiram, quais eram certezas?

* * *

Todas sabemos que nenhuma pessoa pode estar certa o tempo todo.

Racionalmente, portanto, sabemos que estamos erradas em muitos dos nossos conhecimentos e fatos e opiniões.

Emocionalmente, porém, é quase impossível aplicar esse conhecimento no nosso dia-a-dia: vivemos imersas na segurança de nossas verdades.

Como poderia ser diferente? Nossas opiniões nos parecem tão seguras, tão lógicas, tão abalizadas, tão autoevidentes! E, ao mesmo tempo, as opiniões opostas sempre nos parecem algo esquisitas, interesseiras, vendidas, desinformadas, apressadas.

Afinal, se eu não achasse que minhas opiniões são verdade, elas automaticamente deixariam de ser minhas opiniões.

Entretanto, apesar dessa imensa segurança nas minhas verdades, eu também sei que muitas das minhas verdades são necessariamente, indubitavelmente falsas.

* * *

“Não há nada no mundo mais bem distribuído do que o bom-senso”, escreveu Descartes, com um toque de ironia, na primeira frase do seu Discurso do método: “mesmo aquelas pessoas que acham que poderiam ser mais ricas, ou mais cultas, ou mais bonitas, ou mais instruídas, consideram que possuem bom-senso na medida certa.”

Mas o que pode ser mais egocêntrico do que a própria ideia de bom-senso, esse critério narcísico de medição do mundo? Todo homem-bomba se considera dotado do mais profundo bom-senso.

Os grandes crimes da humanidade foram todos cometidos por pessoas do mais inimputável bom-senso, carregando suas verdades na ponta das baionetas.

 

O lixo dos séculos, apodrecendo em mim

Antes mesmo dos vinte anos de idade, era impressionante o lixo dos séculos que já se acumulava na minha mente.

* * *

Alguns conhecimentos eram úteis e eu até me lembrava como tinham sido adquiridos.

Eu sabia, por exemplo, que o segredo para fazer o pão perfeito era borrifar água fria no começo da assadura, conhecimento adquirido depois de meses de tentativa e erro em uma cozinha de Nova Orleans.

Por outro lado, um dia, assisti um clipe de música colombiana e comentei com uma amiga que parecia "festa de porteiro".

Na mesma hora, fiquei horrorizado comigo mesmo.

De onde vinha tanta ojeriza anti-hispânica? Como a maioria das pessoas brasileiras, eu tinha pouquíssimo contato com o mundo hispânico. Nem mesmo conhecia a Colômbia.

Verdadeiro médium cultural, eu estava manifestando não a minha própria opinião, mas canalizando os preconceitos de incontáveis pessoas portuguesas que passaram quase um milênio defendendo sua independência contra todas as outras nações ibéricas, preconceito esse que foi devidamente herdado e mantido pelas pessoas brasileiras.

E por que a referência elitista aos porteiros?

Porque, no imaginário da minha classe social, ambos os tipos de pessoa, as porteiras e as hispânicas, eram gente vagamente marrom, de gel no cabelo (!) e com quem não se devia misturar.

Ninguém nunca precisou me dizer explicitamente que porteiro era algo vagamente indesejável: no meu círculo de pessoas amigas e parentes, não havia nenhum porteiro, ninguém que quisesse ser porteiro, ninguém que tivesse amigo porteiro, ninguém namorando um porteiro.

(Da mesma maneira, várias das minhas amigas e familiares sonhavam em morar na Austrália, Itália, Estados Unidos, mas nenhum em Cuba, Nigéria, Malásia.)

Um simples comentário de poucas palavras já revelou um caudal de conhecimentos nocivos em minha cabeça.

Eu lembrava bem de como tinha aprendido a borrifar água no pão... mas como tinha aprendido tanta besteira sobre pessoas porteiras e hispânicas, e sobre o gel que ambas teoricamente usavam no cabelo?

Ninguém nunca tinha me "ensinado" que hispânicas não eram tão "boas" quanto europeias, ou que porteiros não eram tão "bons" quanto médicos.

Mesmo assim, esses conhecimentos estavam lá, em minha cabeça, influenciando meus pensamentos e minhas ações, provocando comentários lamentáveis dos quais eu imediatamente me arrependia.

(Sobre nossa ojeriza anti-hispânica, veja a Prisão Patriotismo e o texto A hispanofobia brasileira.)

Limpando o disco rígido, programa por programa

Essa não era a única "Verdade" podre em meu cérebro: eu sabia mais, muito mais.

Eu "sabia" que loiras eram burras e vaidosas; gays, afetados e promíscuos, mulatas, fogosas e sensuais. Que o governo melhor é aquele que governa menos. Que os homens devem sempre ser cavalheiros com as mulheres.

E assim por diante, uma lista quase infinita de preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns.

De onde tinham vindo? O que estavam fazendo em uma mente que não lhes pertencia? Como eu pude nunca ter percebido a quantidade de lixo que apodrecia em mim?

* * *

Com menos de vinte anos de idade, minha mente era ainda um computador praticamente recém-chegado da fábrica, mas já repleto de programas maliciosos, vírus, malwares.

Então, comecei a limpeza do disco rígido. Programa por programa.

Para que serve esse programa? Quanto de memória ocupa? Vou precisar dele no futuro? Está atravancando a capacidade de processamento do meu computador? Está entrando em conflito com outro programa mais útil?

Muito mais urgente do que instalar novos programas úteis era desinstalar aqueles programas — alguns inúteis, outros nocivos — que estavam atravancando o bom funcionamento dos programas úteis e do computador em si.

Tomar posse do conhecimento

Meu projeto não era uma simples rebeldia de adolescente bem-alimentado, rejeitando todas as verdades que recebera só para ser do contra.

Eu não estava afirmando que todas as verdades que recebera estavam erradas, nem querendo rejeitá-las todas, mas apenas presumindo que eram falsas até segunda ordem.

Até que pudesse transformar essas verdades de outras pessoas em um conhecimento que fosse meu.

* * *

Exemplo de uma "Verdade" que encontrei em minha mente: o melhor jeito de armazenar pão de forma era fora da geladeira.

E me questionei: por que eu "sei" isso? De onde veio essa "Verdade"?

Da minha mãe, respondi. Ela sempre afirmou que era um absurdo colocar pão na geladeira.

E eu, hoje, adulto pensante e experiente, o que achava?

Bem, eu concordava. Fora da geladeira, as últimas fatias podiam até mofar, mas, dentro da geladeira, o pão inteiro já ficava ruim na hora.

Pois bem. Esse conhecimento agora era meu.

* * *

A partir desse momento, eu não era mais uma criança que deixava o pão fora da geladeira porque era assim que a mãe fazia.

Agora, eu era um adulto que armazenava o pão fora da geladeira por considerar, depois de alguma reflexão, que esse era o método mais apropriado.

A certeza, não a verdade

Uma amiga leu o primeiro rascunho desse texto e detectou uma contradição:

“No começo, você defende que não devemos ficar tão obcecadas com a Verdade, mas, logo depois, propõe questionarmos todas as Verdades do mundo para assim descobrirmos... o quê? A Verdade?!”

Não exatamente.

A "Verdade" sobre a melhor maneira de armazenar pão eu já possuía. Se o que eu quisesse fosse apenas a Verdade sobre esse e outros fatos, o meu projeto não faria sentido.

Só que não basta eu saber algo só porque minha mãe me ensinou — mesmo se essa informação por acaso estiver correta. (Mas, até que possa confirmá-la independentemente, preciso presumir que pode também por acaso estar errada.)

Dado que sei que minha mãe me ensinou algumas coisas certas e algumas coisas erradas, para que eu possa considerar algo que ela me ensinou como "Verdade" eu preciso comprovar essa informação por outros meios.

Preciso torná-la minha.

Preciso transformar "algo que minha mãe ensinou", ou seja, uma verdade que me foi transmitida, uma verdade endossada por uma figura de autoridade, uma verdade que, na melhor das hipóteses, será uma "verdade acidental", em "um conhecimento que possuo", um conhecimento adquirido por mim através de um método cético, através de uma reflexão racional, através de uma experiência prática.

Mesmo que o resultado final seja idêntico, ainda que o meu conhecimento conquistado seja igual à verdade dada, a simples aplicação do método cético faz toda a diferença do mundo.

Trocar a pergunta "isso é verdade?" por "tenho certeza disso?" muda tudo.

* * *

A Verdade é algo dado: fala-se em descobrir ou revelar a verdade, nunca em produzir ou criar a verdade.

A Verdade é algo que está lá, como a América, esperando para ser descoberta.

A Verdade quase sempre precisa de uma figura de autoridade que lhe garanta e lhe revele, que lhe endosse e lhe transmita: de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais.

A Verdade não precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, a Verdade, assim como a América, ainda estará lá.

Já a certeza é um conceito cognitivo: nossas certezas são construídas por nós.

A certeza não pode ser passada de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais: cada pessoa precisa criar a sua.

A certeza precisa do olhar de alguém: só pode existir certeza se houver uma agente humana que se utilize de sua razão para afirmar, na primeira pessoa, ativamente, "eu tenho certeza".

A certeza precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, não restará mais ninguém para ter certeza de nada.

* * *

Não quero as verdades da minha mãe, não por uma rejeição pueril a ela, mas porque quero construir as minhas próprias certezas.

O método cartesiano de Descartes

O método que estou propondo nada mais é do que minha variação pessoal do Método Cartesiano, proposto pelo filósofo francês René Descartes em seus livros Discurso do método (1637) e Meditações sobre filosofia primeira (1641), onde ele faz a pergunta inaugural da filosofia moderna:

"O que eu sei?"

* * *

"Percebi faz algum tempo", escreveu Descartes, "quantas coisas falsas eu tinha aceitado como verdadeiras desde a infância e o quão duvidoso e incerto era o edifício do conhecimento que eu tinha levantado sobre bases tão precárias. Por isso, se eu quisesse estabelecer algo de firme e duradouro nas ciências, era necessário, pelo menos uma vez em minha vida, me desfazer de todas as opiniões que até então dera crédito, derrubar todo esse edifício e começar outra vez a partir das primeiras fundações."

"Não é meu interesse, porém," ele faz questão de afirmar, "dizer às outras pessoas o que fazer, mas simplesmente reformar meus próprios pensamentos e construir em um terreno que seja apenas meu."

"O empreendimento me parece gigantesco," continua ele, "mas as circunstâncias da minha vida, unindo o ócio e o conforto à certa maturidade, indicam que agora é a hora oportuna de me aplicar, com seriedade e liberdade, à demolição geral das minhas opiniões atuais."

"Assim como acontece ao demolir uma velha casa," escreveu, "quando se conservam os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões mal alicerçadas, eu ia fazendo diversas observações e adquirindo muitas experiências, que me serviriam mais tarde para estabelecer outras mais corretas."

"Antes de demolir a casa velha e reconstruí-la de novo, entretanto," aponta, "era preciso ter onde morar enquanto durassem as obras, ou seja, ter ao menos uma certeza indubitável onde eu pudesse habitar."

"Afinal," diz ele, "se Deus me concedeu a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, não era para que eu me contentasse com as opiniões dos outros, e sim para que eu utilizasse o meu próprio juízo para analisá-las, segui-las, descartá-las."

(O texto acima é uma paráfrase de vários trechos do Discurso e das Meditações.)

* * *

Assim, desconfiando da evidência dos seus sentidos, Descartes se propõe a desaprender todas as verdades sobre as quais não tivesse certeza.

Finalmente, só lhe resta uma única certeza, o tijolo fundacional onde reerguerá o edifício do conhecimento:

"Penso, logo existo".

Se ele estava ali, pensando aquelas questões, então, era porque existia.

Disso, e apenas disso, ele poderia ter certeza.

Ando, logo existo

Por que Descartes diz "penso, logo existo" e não "respiro, logo existo" ou "ando, logo existo"?

Afinal, quem anda necessariamente existe, não? Seria possível, ao mesmo tempo, ser capaz de andar e não existir?

* * *

Uma das premissas fundamentais de Descartes é que nossos sentidos são falhos e sempre podem estar nos iludindo.

Portanto, em algumas circunstâncias bem específicas, poderia até fazer sentido dizer “penso que estou andando, mas não estou andando” (um sonho, uma ilusão, uma realidade virtual simulada, etc), mas jamais faria sentido dizer “penso que estou pensando, mas não estou pensando”.

Por isso, para Descartes, também teria sido possível formular a sua certeza primordial nos seguintes termos:

"Penso que estou andando, logo existo".

Para Descartes, o que importa, o que garante que ele existe, não é o ato mecânico de existir (ou de andar, ou de respirar) e sim sua consciência de que existe (ou de que anda, ou de que respira).

Ou seja, uma vez mais, voltamos ao "penso" como condição primordial.

Essa talvez seja a essência do Método Cartesiano: não basta a verdade de que estamos andando, precisamos da certeza de que estamos andando.

 

O quanto preciso saber para poder saber?

Acontece muito comigo.

Alguém chega e pergunta minha opinião sobre algo. O escândalo na Petrobrás, a crise na Ucrânia, a transposição do rio São Francisco.

Quase sempre, minha resposta é a mesma:

"Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião."

Aparentemente, essa minha resposta soa como uma matrícula em um curso, pois no instante seguinte já estou assistindo uma aula expositiva sobre o tema.

Enfim, quando a pessoa termina sua explanação não-solicitada sobre os malefícios (ou benefícios!) da usina de Belo Monte, eu até agradeço, mas só por educação. Afinal, se eu quisesse saber sobre esse assunto, teria buscado informações eu mesmo.

Mas até aí, tudo bem. Ouvir pessoas falando sobre seus interesses quase sempre é bastante educativo. O pior é que elas ainda não desistiram de arrancar de mim algum posicionamento:

"Bem, agora que te contei tudo sobre a crise hídrica de São Paulo, qual é a sua opinião?"

E eu, com o maior tato possível, sabendo que estou andando em terreno minado, respondo:

"Hmm, desculpe, mas eu continuo sem ter conhecimento o suficiente sobre esse assunto para emitir uma opinião."

Se houver um jeito mais delicado de falar isso, por favor, me contem. Por enquanto, a reação das outras pessoas é quase sempre de ofensa:

"Coooomo assim?! Está me chamando de mentirosa? Mas eu não acabei de ficar aqui meia hora te contando tudo o que está acontecendo na Síria?"

E eu tento explicar, de modo que não se ofenda ainda mais:

"Bem, agora eu tenho bastante conhecimento sobre a sua opinião em relação à Reforma Eleitoral. Aliás, só com base no que falou, já dá para deduzir muito sobre quais jornais você lê, em quem votou para presidente, quais suas posições políticas, etc, mas continuo sem possuir conhecimentos suficientes e adequados sobre a Reforma para poder emitir uma opinião sobre ela."

Não adianta. Por mais que eu insista, a pessoa sempre acha que estou chamando-a de mentirosa.

* * *

O quanto é necessário saber sobre um assunto para que possamos considerar que "sabemos" aquele assunto?

Se todas as nossas informações sobre um assunto vierem da mesma fonte, mesmo se muito abalizada, mesmo se muito querida, podemos realmente considerar que "sabemos" aquele assunto?

SUS: um estudo de caso

Uma das dificuldades de escrever um texto como esse é a seguinte:

Se não dou exemplos, o argumento fica abstrato demais e muitas pessoas leitoras se perdem; se dou exemplos, muitas pessoas se concentram somente neles, atacando-os ou defendendo-os, e perdem de vista o argumento.

Então, consciente dos riscos, considerei importante exemplificar com mais detalhes o método que estou descrevendo. Peço às pessoas leitoras que se apeguem mais ao argumento sendo desenvolvido e menos às minúcias do exemplo em si.

* * *

Um dia, em uma conversa aleatória, me referi ao SUS, o Serviço Único de Saúde brasileiro, como  "um serviço público completamente caótico e desfuncional".

Minha companheira, sempre atenta às traições que cometo contra a pessoa que quero ser, logo questionou:

"Quem é que sabe que o SUS é 'um serviço público completamente caótico e desfuncional'? Você ou sua família?"

Era uma boa pergunta: por que eu "sabia" que o SUS era "um serviço público completamente caótico e desfuncional"? O que essa Verdade estava fazendo em minha mente, tão concreta e tão autoevidente, tão acrítica e tão não-problemática, ao ponto de ser repetida por mim em conversas?

* * *

No meio social onde eu crescera, classe média alta da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no final do século XX, era uma Verdade inquestionável e autoevidente, daqueles que naturalmente não precisam ser nem justificadas nem defendidas, que não só o SUS mas quase todos os serviços públicos, do transporte à educação, eram caóticos e desfuncionais.

Mais ainda, essa Verdade era indissociável de um certo liberalismo econômico de tendências conservadoras quase unânime entre essas mesmas pessoas, baseado em premissas também autoevidentes para elas, como a idealidade do Estado mínimo e a superioridade da iniciativa privada sobre os serviços públicos.

E, por incrível que pareça, apesar de eu ter me afastado desse ambiente há décadas justamente por rejeitar essas Verdades, ainda assim eu me pegava distraidamente agindo como seu porta-voz!

* * *

Uma ressalva importante:

Somente o fato de essa Verdade quase hegemônica nessa classe social (de que o SUS e outros serviços públicos são caóticos e desfuncionais) estar perfeitamente alinhada com posição política quase hegemônica dessa mesma classe social (liberalismo econômico de tendências conservadoras) não quer dizer que essa Verdade seja necessariamente falsa.

Afinal, nossas verdades estão quase sempre alinhadas às nossas posições políticas.

* * *

Mas de onde vinha essa Verdade? Como essas pessoas sabiam que o SUS era caótico e desfuncional?

Tinham acesso a dados estatísticos que demonstravam a superioridade da medicina privada? Tiveram experiências pessoais terríveis no SUS?

Por ter crescido entre essas pessoas, eu sabia que a resposta para as duas últimas perguntas era "não". Algumas delas, inclusive, pagavam seus planos de saúde particulares com muito sacrifício.

Entretanto, quando uma pessoa tem uma opinião que considera autoevidente, qualquer pergunta sobre ela já soa como uma crítica e um desafio:

"Porra, Alex, é óbvio que o SUS é uma merda! Você parece que gosta de ser do contra, só pode!"

Então, fiz a pergunta com cuidado:

"Como você sabe que o SUS é caótico e desfuncional?"

* * *

Recebi variações das seguintes três respostas:

1. Era autoevidente que o SUS era caótico e desfuncional porque, por definição, qualquer serviço público sempre seria pior que um serviço privado e, além disso, o governo de um país em desenvolvimento como o Brasil jamais poderia oferecer um serviço médico para 200 milhões de pessoas com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares do Rio e de São Paulo;

(Quanto a isso, eu não tinha comentários: era um dogma de fé.)

2. As funcionárias de suas empresas ou as empregadas domésticas de suas casas contavam histórias de terror do SUS, de filas intermináveis, de esperas longuíssimas, etc.

(Apesar de serem de segunda mão, essas histórias de terror bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, se eu trabalhasse para essas pessoas, capitalistas até a raiz da alma, eu preferiria inventar que passei duas noites na fila do posto de saúde — logo, preciso de dois dias de folga, patroa! — do que dizer que fui atendido em meia hora na UPA perto de casa.)

3. Tinham visto/lido/ouvido várias reportagens sobre o caos do SUS na Veja/ Globo/CBN/Estadão/etc.

(Essas reportagens bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, esses veículos de mídia, além de compartilharem do mesmo liberalismo econômico de tendências conservadoras, também tinham um forte interesse financeiro em torpedear o SUS. Afinal, se o SUS funcionasse como deveria e fosse utilizado satisfatoriamente por todas as pessoas cidadãs brasileiras, esses veículos perderiam toda a enorme receita publicitária dos planos de saúde particulares. Então, presumindo que há tanto méritos e falhas no SUS, esses veículos sempre vão cobrir com mais ênfase e mais destaque as falhas do que os méritos.)

* * *

Nesse ponto, alguma pessoa leitora talvez me interpele:

"Bem, Alex, se eu não posso dizer que o SUS é caótico e desfuncional, você também não pode dizer que o SUS é lindo e eficiente!"

Sim. É por isso que em nenhum momento eu fiz essa afirmação.

* * *

Todas as propagandas oficiais do governo sobre o SUS têm o mesmo interesse explícito em enaltecê-lo que a grande mídia tradicional tem em torpedeá-lo. Uma anula a outra.

Seguramente existem dados e relatórios estatísticos extensos comparando o SUS à rede privada e estabelecendo metas e padrões para o atendimento às pessoas cidadãs. Mas quem lê esses relatórios? Provavelmente nem os membros do Congresso cujas decisões deveriam ser determinadas por esses dados.

Posso afirmar que, na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Copacabana, sempre fui atendido tão bem quanto em todos os bons hospitais privados que já utilizei em três países.

Mas foram atendimentos sem gravidade, em uma única UPA, em um bairro de elite, turístico e icônico, da segunda maior cidade do país, ex-capital e porta de entrada da América Latina.

E se fosse câncer na próstata ou faca na barriga, em vez de pressão alta e infecção estomacal?

E se fosse no interior do Pará, em vez de na zona sul da cidade do Rio de Janeiro?

Nenhuma das minhas muitas experiências pessoais e anedóticas na UPA de Copacabana me permite fazer extrapolações para o SUS como um todo, em um país de dimensões continentais, duzentos milhões de habitantes e a mais profunda desigualdade.

* * *

Apesar de todas as minhas muitas interações positivas com o SUS, não me sinto abalizado para afirmar que "o SUS é bom".

Se você me perguntar sobre o SUS, vou te dar mesma opinião que tenho sobre a crise na Ucrânia:

“Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião.”

Já as pessoas entre as quais eu cresci continuam não hesitando em bater no peito para afirmar o autoevidente caos no SUS — mesmo sem nenhuma vivência pessoal ou dado estatístico sobre o SUS.

Então, afinal, o que é "saber"? Quanta certeza precisamos ter para podermos afirmar que "sabemos" de algo?

* * *

Algumas pessoas leitoras talvez considerem que estou propondo um padrão inalcançável. (Descartes foi acusado da mesma coisa.) Que, de acordo com esse método, seria praticamente impossível formar uma opinião. Que não teríamos nunca como saber nada com certeza.

Mas será que isso é tão ruim assim?

Será que já não nos damos ao direito de ter e articular opiniões demais, sobre tudo, o tempo inteiro?

Não seria melhor exercermos um saudável estado de não-opinião?

(Esse aliás é o sexto exercício de empatia, a ser publicado em fevereiro aqui no PapodeHomem: Exercer a não-opinião.)

 

Ler mais para saber menos

De vez em quando, eu me interesso sobre algum assunto e decido me informar mais. Para isso, leio pelo menos dois livros inteiros sobre o tema.

* * *

Se quero me informar sobre como Euclides da Cunha narraria a Guerra de Canudos, quais recortes escolheria, quais aspectos enfatizaria, etc, eu posso ler Os sertões (1903).

Mas, se quero me informar minimamente sobre a Guerra de Canudos em si, eu preciso ler, pelo menos, mais um livro sobre o assunto.

* * *

Para escrever a Prisão Verdade, reli o Discurso do método (1637) e as Meditações sobre filosofia primeira (1641), de Descartes.

Li também quatro livros sobre ele, desde introduções como Descartes em 90 minutos (1996), de Paul Strathern, até o magistral Descartes: The project of pure inquiry (1978), de Bernard Williams, passando por Descartes, de Margaret Wilson, e Descartes: Belief, scepticism and virtue (2001), de Richard Davies.

Cito esses títulos não apenas para dar a bibliografia da Prisão Verdade, mas para levantar a seguinte questão: somente o livro de Williams, vastamente superior e realmente um clássico, já teria sido mais do que suficiente para eu escrever o meu texto.

Mas aí eu seria refém da leitura de Williams de Descartes, por melhor que essa leitura fosse.

Então, quando eu escrevesse sobre Descartes aqui na Prisão Verdade, mesmo se o resultado final do texto fosse idêntico para as pessoas leitoras, eu estaria de fato canalizando o Descartes de Bernard Williams, visto através do prisma dos interesses e das limitações, dos preconceitos e da biografia de Bernard Williams.

Se eu só tivesse lido Williams, o Descartes de Alex Castro estaria contido no Descartes de Bernard Williams.

Mas quero falar do meu Descartes, visto através do prisma dos meus interesses e das minhas limitações, dos meus preconceitos e da minha biografia:

Eu me compadeço da morte de sua única filha, aos cinco anos; me revolto por ele ter finalmente aceito o convite da Rainha da Suécia, só para morrer lá, de frio, aos meros 53 anos; discordo violentamente da separação que faz entre mente e o corpo (quando falo que "você é o que você faz", estou sendo radicalmente anti-cartesiano – sobre isso, leiam O erro de Descartes [1994], de António Damásio); considero que a maneira como prova a existência de Deus é tão desastrada, tão destoante do resto da sua obra, que não dá para saber se ele realmente tinha tanta fé que não percebeu que o seu método desprovava a existência de Deus, ou se foi apenas para evitar represálias da Igreja e fugir do destino de Galileu.

Mais do que tudo, quero falar do Descartes que propôs o Método Cartesiano de ceticismo sistemático que eu, aqui do meu jeito torto e limitado, tento utilizar até hoje.

(Para as pessoas que talvez tenham ficado confusas com a diferença entre os conceitos de Verdade, certeza e conhecimento utilizados no meu texto, recomendo muito o livro de Bernard Williams.)

* * *

Ler apenas um livro dá uma falsa sensação de conhecimento. Passamos de não saber nada para saber muita coisa sobre a Guerra de Canudos em poucos dias. Chega a ser intoxicante e tentador pensar que "agora sim conheço a Guerra de Canudos!"

Mas não. Conheço apenas o recorte específico, as perspectivas e as opiniões, daquela pessoa autora sobre a Guerra de Canudos. E olhe lá.

Ler um segundo livro sobre o mesmo assunto quebra esse efeito. Provavelmente, ambos os livos vão dialogar entre si, trocar citações ou trocar refutações, trocar elogios ou trocar farpas.

De repente, nos damos conta que a história da Guerra de Canudos não é tão simples quanto pensávamos, que existe muita discordância mesmo entre as pessoas que realmente conhecem a Guerra de Canudos, que a história da Guerra de Canudos ainda está sendo escrita e reescrita.

Aquela interpretação sobre Antônio Conselheiro que me parecia tão sólida e pouco problemática no primeiro livro (até citei, empolgado e inocente, para os amigos na mesa de bar!) é justamente a interpretação que o segundo livro desconstrói impiedosamente. E vice-versa.

No caso da Prisão Verdade, várias afirmativas bobas que eu teria feito sobre Descartes foram abortadas e nunca chegaram ao meu texto final, por eu ter percebido, lendo um livro contra o outro, que filósofos muito mais inteligentes que eu já vinham discutindo aquela questão há séculos sem conseguir chegar a um acordo.

* * *

Eu leio mais de um livro sobre o mesmo assunto não para saber mais sobre o assunto.

Eu leio mais de um livro sobre o mesmo assunto para me dar conta da minha enorme ignorância sobre o assunto.

Ler menos para saber mais

Quando se escreve profissionalmente, pessoas leitoras e jornalistas sempre nos pedem por "recomendações de leitura".

* * *

Mesmo em um país de poucas pessoas leitoras como o Brasil, o lobby da leitura é fortíssimo.

Não lemos quase nada, mas colocamos a leitura no mesmo altar quase-religioso onde já estão a atividade física e a comida saudável.

Discordamos em tudo, mas concordamos que deveríamos estar todas lendo mais, malhando mais, comendo melhor.

Gastamos fortunas em comidas orgânicas que não gostamos, em academias que não frequentamos, em livros que não lemos, e depois nos martirizamos por fracassar em nosso projeto de sermos pessoas mais lidas, mais saradas, mais saudáveis.

* * *

As pessoas que realmente querem ler leem o tempo todo. Estão lendo agora. Aproveitam cada cinco minutos no metrô ou na fila do banco para ler mais duas pagininhas, como um fumante ansioso que aproveita qualquer oportunidade para ir fumar um cigarrinho lá fora.

Já as pessoas que dizem

"Ah, eu queria tanto ler mais..." (ou fazer mais ginástica, ou comer mais vegetais, etc)

não querem realmente ler mais.

Elas apenas acreditam sinceramente que essas atividades (ler, malhar, comer melhor, etc) são intrinsecamente boas e indispensáveis para a identidade que estão construindo para si mesmas, de pessoas cultas, saradas, saudáveis, e, por isso, desejam ardentemente querer fazer essas coisas.

Mas não querem. Porque, se quisessem, já estariam fazendo, não querendo fazer.

Como escritor, eu gostaria de poder absolvê-las dessa ansiedade: ninguém precisa ler. Ler não é intrinsecamente bom. Ler é um passatempo como qualquer outro. Existem mil maneiras de aprender os fatos do mundo e de se tornar uma pessoa melhor sem passar pela leitura.

Se gostam de ler, leiam. Se não gostam, não se culpem.

* * *

Então, sempre que me pedem por "recomendações de leitura", recomendo que não leiam nada.

Pergunto: quanto tempo em média passaria lendo um livro de, digamos, duzentas páginas? Oito, dez horas ao longo de quatro, cinco dias?

Então, economize o valor do livro, encontre um lugar tranquilo em sua casa e ocupe esse tempo fazendo a jardinagem do seu cérebro, podando galhos, arrancando ervas daninhas.

Quantos preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns você não tem aí dentro?

Em vez de absorver mais e mais novas verdades, em um verdadeiro frenesi acumulativo cultural, coloque o lixo para fora.

Em vez de ler, des-leia. Em vez de aprender, desaprenda.

A verdade sobre As Prisões

Esses são textos de ficção, escritos por um autor de ficção, que assina um nome de ficção.

Talvez crônicas ensaísticas, talvez romance pós-moderno. Talvez histórias filosóficas, talvez ensaios narrativos.

Toda e qualquer anedota aparentemente autobiográfica nos meus textos foi inventada por mim, para fortalecer ou ilustrar um argumento, e não possui relação alguma com a realidade.

A verdade raramente é verossímil. Quanto mais verdadeiras parecerem as histórias, mais mentirosas serão.

Na verdade, quase todas são reais, mas nenhuma é verdadeira. Algumas que digo que aconteceram comigo na verdade aconteceram com outras pessoas. Algumas que digo que aconteceram com outras pessoas na verdade aconteceram comigo. E vice-versa.

Para evitar que meus textos se tornassem relatos egocêntricos da minha vida, todas as anedotas autobiográficas são consistentemente contraditórias, apenas acessórios a serviço de algum argumento sendo desenvolvido.

Eu sou irrelevante.

O que importa é a mensagem, nunca o mensageiro.

O que importa são as ideias sendo expostas, não a pessoa que as está expondo.

* * *

Talvez minhas intenções sejam as piores possíveis. Talvez eu tenha escrito o oposto do que realmente penso. Talvez eu tenha sido do contra só para criar polêmica. Talvez eu tenha dito tudo o que as pessoas queriam ouvir.

E daí? Minha mentira pode ser a sua verdade. Minha ironia, seu dogma.

Você, a pessoa destinatária, é muito mais importante do que eu, a remetente. É você que decifra, interpreta e contextualiza a mensagem. O meu texto vai dizer o que você disser que ele disse.

Se gosta do que escrevo, se meus textos lhe ensinam alguma coisa, se julga que minhas ideias têm algum valor, então, essa é uma verdade mais importante do que qualquer verdade sobre minha biografia ou minhas intenções.

Se não gosta, se não ensinam, se não têm valor, então a verdade sobre os detalhes da minha vida importa menos ainda.

Só o texto importa.

Alex Castro não existe

Alex Castro, na verdade, não existe.

Alex Castro é um mentiroso patológico: mente sobre sua vida, seus sentimentos, mente até sobre mentir. Não dá pra confiar em nada do que escreve. Principalmente sobre ele mesmo.

Alex Castro é um grande fingidor: ele mente para convencer os outros ou acredita em suas próprias fantasias?

Alex Castro é um narcisista que finge não ser? Ou finge que é o narcisista que não é?

Alex Castro não existe, mas você existe. Pode se apalpar. Se você pensa que está lendo esse texto, logo, você existe.

Alex Castro não importa, mas você importa

Alex Castro não existe, mas os minutos que você passa lendo os textos dele existem: para o bem ou para o mal, são concretos e foram perdidos para sempre.

Alex Castro não existe, mas tudo o que Alex Castro faz surgir em você, seja raiva ou desprezo, reflexão ou respeito, existe.

Não adianta tentar entortar a colher: a verdade é que a colher não existe.

É só você, o tempo todo.

A última palavra é de Descartes

"Não quero dizer como cada pessoa deve conduzir sua razão, mas apenas mostrar como me esforcei para conduzir a minha. Só pessoas que se consideram superiores têm o atrevimento de ditar normas às outras e, quando erram em qualquer coisa, já são logo censuradas. Mas como não ofereço esse texto senão como uma história, ou talvez uma fábula, onde se encontrarão alguns exemplos para seguir e muitos outros para evitar, espero que será útil a alguns sem ser nocivo para ninguém, e que todas as pessoas serão gratas por minha franqueza." (Discurso do Método, parte I, grifo meu)

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Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais(Ou não: Alex Castro não existesó o texto importa. Em caso de dúvidas, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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O encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.

Agora, estou promovendo o encontro ”As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.

O encontro “As Prisões“ é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.

O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)

Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.

Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.

Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.

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as imagens desse texto não são pinturas. São fotografias de pessoas e espaços reais, obra da artista plástica Alexa Meade.

 


publicado em 12 de Janeiro de 2015, 22:38
File

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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