O hábito de rotular pessoas pode matar

Todo bom médico sabe que, ao tratar de crianças, é fundamental ouvir o que os pais têm a dizer, pois a "intuição materna" traz valiosas informações. Mas nessa história o rótulo de mãe intuitiva foi substituído e causou uma tragédia. Eis nosso ponto de partida para uma conversa sobre um tipo especial de cegueira.

Amy e a freguesa

O doutor Brian Hastings relata que uma mulher havia entrado desesperada no hospital com sua filhinha de dois anos. Amy estava sentindo dor de barriga, possível sintoma de uma simples má digestão, mas que estava acionando o instinto materno como algo possivelmente perigoso.

Apesar de existir uma longa lista de procedimentos, exames e análises que poderiam ser realizados na garota, os médicos da sala de emergência focalizaram sua atenção na mãe afobada, que tinha todos os jeitos de uma escandalosa sem noção. Amy e sua mãe foram mandadas de volta para casa porque tudo ficaria bem.

No dia seguinte, a cena se repetiu: a mãe estava ainda mais agitada, com a filha a tiracolo. Foi neste momento que os médicos olharam uns para os outros e sussuraram o rótulo "Frequent flyer" (numa tradução livre, seria equivalente a dizer que a mulher era uma “freguesa”, apelido pejorativo para se referir a hipocondríacos e outros pacientes exagerados).

No terceiro dia, a mãe da garotinha retornou ao hospital e foi novamente ignorada pelos médicos, que se recusaram a realizar os exames devidos. Foi assim que Amy faleceu.

Bebida para criança ou uma das melhores cervejas do mundo?

No livro A Força do Absurdo (Sway: The Irresistible Pull of Irrational Behavior), Ori e Rom Brafman analisam os motivos de agirmos de forma irracional no mundo político, corporativo e mesmo ao lidar com a vida de pacientes, julgando em qual categoria eles se encaixam. Entre os diversos elementos como a pressão social e cálculo entre custo-benefício considerando equações incompletas, os irmãos Brafman listam a rotulagem como um dos fatores que causa ruído em nossa capacidade cognitiva.

Na visão dos irmãos Brafman sobre o caso de Amy, a partir do momento em que o rótulo de “freguesa” foi colado na testa da mãe desesperada, todos os médicos foram enfeitiçados por uma força irracional de cegueira cognitiva.

Quando li essa história, acabei me lembrando de outro livro que segue uma linha de pesquisa muito semelhante, do Malcolm Gladwell. Blink: a Decisão num Piscar de Olhos conta como nossas primeiras impressões podem ser poderosas. Em alguns casos, um expert em arte pode bater os olhos em uma suposta relíquia encontrada em um campo arqueológico e dizer que é uma obra forjada. Nos primeiros capítulos, Gladwell aponta como nossa intuição pode ter mais eficácia do que uma análise de laboratório.

Abbie, a trombonista

O contraponto oferecido por Gladwell é que a nossa decisão do piscar de olhos pode também estar terrivelmente equivocada. Os rótulos podem ser impostos ao mundo coletivamente, como na época em que as mulheres não eram aceitas para tocar em orquestras. Nesse passado não muito distante, a única exceção feita pelas conservadores orquestras era quando o instrumento era considerado mais “feminino”, como o violino.

O rótulo específico era o de mulheres como seres inferiores e frágeis que nunca alcançariam a maestria musical em um instrumento complexo ou teriam a força física necessária para por exemplo assoprar um trombone com o impacto necessário.

Uma garota como Abbie Conant nunca teria vez no mundo da música clássica, pois a banca examinadora para seleção nas orquestras rapidamente colocaria um rótulo: sendo mulher, a qualidade de sua música seria inferior. Sua sorte foi que, durante os testes para a entrada na Filarmônica de Munique para a disputada vaga de trombonista principal, os candidatos (todos os outros homens) tiveram que tocar por trás de uma cortina, para evitar favoritismos políticos e para que os juízes da banca examinadora pudesse concentrar apenas na qualidade da música tocada.

Quando a melhor performance foi selecionada por unanimidade, os juízes alemães estavam ansiosos para ver quem era o poderoso homem com o fôlego de um gorila que havia realizado a performance impecável. Quando as cortinas se abriram, mal podiam acreditar que haviam escolhido uma garota. (Infelizmente, nos anos seguintes, a cortina da audição foi abandonada e o machismo contra Abbie não acabou).

Link YouTube | Palestra de Ori e Rom Brafman no Google (não entende inglês?)

Como não ser vítima do processo de rotulagem?

Como fazemos para aplicar os conceitos dos irmãos Brafman ou do Gladwell em nosso dia a dia, evitando as armadilhas da rotulagem consciente e inconsciente que utilizamos a cada minuto para não ficar malucos? Afinal, sem rotular conceitos, nosso cérebro derreteria. Ninguém quer dar tapinha na cabeça de um rottweiler raivoso só para dizer que não quer rotular o animal como um bicho perigoso. Precisamos de utilizar nossa capacidade de filtragem e cognição através de analogias, padrões visuais e experiências diretas e indiretas recebidas de amigos e da mídia.

Mas e quando estamos errados? Quando em nosso trabalho ignoramos as mães supostamente hipocondríacas e suas filhas? Ou quando coletivamente mantemos crenças de que uma garotinha nunca terá a capacidade física de tocar trombone tão bem como um gigante da Bavária?

Quando nosso modelo de mundo é rígido a ponto de causar irritabilidade com informações conflitantes às nossas crenças, permanecemos aprisionados na bolha criada pelo ego. O psicólogo Leon Festinger chama esse efeito de dissonância cognitiva: quando somos apresentados a uma informação conflitante, isso pode causar uma dor emocional que nos força a buscar uma forma de afastamento.

O Esopo tem a fábula da raposa e das uvas, que ilustra muito bem esse conceito. Uma raposa encontrou um apetitoso cacho de uvas pendurado em uma vinha alta. Depois de pular muito e notar que não teria como as saborear, ela vai embora, dizendo que as uvas ainda não estavam maduras o suficiente. É fácil desprezar aquilo que não conseguimos obter.

Uma prática para driblar esse mecanismo é o desapego, aceitando que as coisas podem ser (e provavelmente são) diferentes daquilo que achamos ser numa primeira olhada.

Só por que a embalagem é de papel marrom, significa que o produto é mais natureba?

Por isso é que pedi para o editor de conteúdo da nossa não-revista encerrar esse post. Deixo um agradecimento ao Gustavo Gitti por aceitar esse convite.

"Seiiti, o caso da Amy é impressionante! Mais triste ainda é ver quantas pessoas matamos, mutilamos, asfixiamos sutilmente todos os dias. Não só com primeiras impressões, mas quando achamos que conhecemos alguém profundamente.
Como você, penso que o problema não é exatamente o processo de rotular. Aliás, não vejo sentido no discurso que trata rótulos como máscaras escondendo uma suposta essência. Os rótulos são funcionais em nossa navegação no mundo. Sem rótulos, morreríamos loucos ao tentar entender cada coisa em toda a sua profundidade ou, no outro extremo, manter todas as coisas indefinidas e misteriosas.
O problema começa ao acreditarmos nos rótulos, ao tomá-los como sendo a própria realidade. Tal cegueira não é tão simples de superar porque estamos bem presos ao nosso próprio referencial, autocentrados, olhando tudo a partir de nossa perspectiva, pensando que o mundo é apenas o que acontece nos 360º a partir de um ponto chamado "eu".
Na mulher que dorme conosco, só vemos a esposa. No moleque que vive em nossa casa, só vemos o filho. Cremos que todas as pessoas, locais, objetos, situações são, neles mesmos, apenas aquilo que se construiu em sua relação conosco, apenas aquilo que são para nós. E não estou falando de imagem mental, mas a própria presença sensorial, tomando 100% de nossa percepção.
É muito raro um namorado que olha para a namorada e não vê apenas a namorada.
A saída que vejo não é tentar reprimir o processo inevitável de rotulagem funcional, mas viver além de si mesmo como referencial, cultivar interesse genuíno pelos outros, ser capaz de olhá-los em seus próprios mundos, transitar entre diversas perspectivas e principalmente perceber que as qualidades que atribuímos aos outros são relacionais, construídas entre nós, não são inerentes, não estão dentro do outro, não constituem o outro. O outro é sempre livre para agir além das identidades construídas na relação e nós seremos mais felizes se abrirmos espaço para surpresas assim.
Dizer que alguém é chato ou tímido, definir uma situação como dolorida ou alegre é como falar que uma sala é fria. O frio só existe em relação com a temperatura de nosso corpo, não como uma propriedade da sala. Do mesmo modo, o mundo não é senão a experiência que temos do mundo.
Para ampliar essa experiência, melhor do que focar nos rótulos é se relacionar com a natureza espaçosa que recebe os rótulos e com a natureza criativa que cola os rótulos – em nós, nos outros, em cada fenômeno."
–Gustavo Gitti

Como sempre, o papo continua nos comentários.


publicado em 27 de Dezembro de 2010, 10:56
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Seiiti Arata

Gosta de ajudar pessoas e fazer amigos. E ainda recebe dinheiro pra isso. Fundador da Arata Academy.


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