Nós e os pobres

A maneira como vemos os pobres e os esfarrapados no Brasil é variada e repleta de fantasias. Coitados? Malandros? Excluídos? Conformistas? Incompetentes? Oportunistas?

Não faltam adjetivos quando o olhar é dirigido a este outro, diferente de nós. Um outro capaz de despertar muitos sentimentos. Afinal, como encaramos – ou deveríamos encarar – os pobres? Ofereço três olhares.

Foto: Jorge (amolmagazine.net)

Lição (in)comum

"Quem for igual que prove e só é digno de liberdade aquele que é capaz de conquistá-la."
–Baudelaire | Espanquemos os pobres

Já é tarde da noite, a rua está deserta, mas você caminha para casa com certa tranquilidade. O bairro é seguro. No máximo o que se tem é a presença de mendigos, no mais das vezes, conhecidos da vizinhança.

Aliás, é justamente um deles que você avista a poucos metros. O velho é manjado, toca a campainha da sua casa inúmeras vezes sempre com a mesma ladainha: um pedaço de pão, um pouco de dinheiro, um agasalho antigo...

Você aperta o passo e muda de calçada, apenas para evitar o constrangimento. Não acha certo dar esmola, no entanto, detesta dizer não. Mas o velho é teimoso. Também troca de calçada e vem ao seu encontro, bêbado, como sempre. Está parado com a mão direita estendida, aguardando as moedas. Parece falar com os olhos, cheios de ramela e tristeza, na expectativa de que você entende o gesto, a situação, e, por isso, não terá coragem de negar-lhe o pedido.

Mas você finge que ele não existe e segue caminhando. Então o velho começa a te seguir. Você escuta os passos cada vez mais próximos, até sentir, sobre o ombro direito, os dedos carcomidos e imundos do maldito.

É a gota d'água. Furioso, você pega o velho pelo colarinho e o lança em direção ao muro. O estrondo provocado pelo impacto dos ossos contra a parede é considerável. Ele cambaleia um pouco, e, depois, desaba.

Você corre. No entanto é surpreendido com os pedidos do velho que, mesmo no chão, pede desculpas chorando e, aos gritos, implora por um trocado. Nesse instante seu desejo é arrebentá-lo. Ele ainda não tinha entendido o recado.

Mas não deseja correr riscos. Rapidamente avalia o movimento e certifica-se de que na rua não há nenhuma alma viva. Visualiza uma caçamba de entulhos do outro lado da calçada. Quem sabe ali não estaria o instrumento certo, na hora certa, para aplicar a lição mais do que merecida no sujeito errado?

Para sua satisfação, entre pedras e lixo, há uma viga de madeira, fina porém pesada, dessas que suportam cortinas de janela. Melhor impossível. É com ela que você vai castigar, insanamente, as costas do mendigo.

Dito e feito... Ele urra e se retorce, protegendo a cabeça com as mãos. E enquanto trucida o desgraçado, fica imaginando a cara de bosta com que todas as vezes ele pediu esmola durante os mais de sessenta anos de sua vida de misérias.

Enfim, com muito custo, você se cansa. Joga a viga de lado e retoma seu caminho. O corpo, anestesiado pela adrenalina que corre solta pelas veias, nunca pareceu tão leve. A mente, vazia, encontra-se entorpecida. Neutralizado o pensamento, tudo novamente parece em paz.

Por pouco tempo. A pedrada na cabeça vem seca, e junto dela, a realidade. Dessa vez, você é que está no chão, e o velho, montado sobre seu tórax, babando sangue misturado com saliva e cachaça, enche sua cara de porrada e cuspe.

O cheiro é insuportável. Você, indefeso. Mas o velho parece não estar se divertindo. Muito embora nos poucos momentos em que consegue abrir os olhos e cruzar com os dele, nota certa vivacidade, um brilho radiante e incomum.

Dali em diante, resta apenas esperar o fastio do vagabundo, que enfim se dá. Aos prantos, ofegante, o pobre diabo levanta com dificuldade. Tenta apressar o passo, cambaleando, quase sem forças. Por sua vez, você grita para que não vá embora. Ainda estirado no chão, abre a carteira, pega metade da grana, estende para o velho, e diz: "Pode pegar... É seu. Agora sim você é digno do meu dinheiro".

(A história não é criação minha. Trata-se de uma adaptação simplificada da prosa poética de Baudelaire, intitulada "Espanquemos os pobres", que se encontra no livro Flores do Mal).

Mão na cabeça

"Às vezes sou o policial que me suspeito / me peço documentos
e mesmo de posse deles / me prendo
e me dou porrada."
–Cuti | "Quebranto", em Negroesia

Os Gêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo)

Analisemos o grafite acima. O que pretendiam os dois vagabundos? Planejavam um sequestro relâmpago? Pivetes à espera do momento oportuno para baterem uma carteira? Apenas tomariam o relógio dos motoristas distraídos? Traficantes, talvez? O que trazem dentro das bolsas? Estão armados? Quem sabe, “nóias” vagando a ermo, vitimados pelo crack, perdidos na fissura? Ou seriam monstros que, além de assaltar, gostam mesmo é de barbarizar suas vítimas?

Obra da famosa dupla de grafiteiros que assinam como “Os Gêmeos”, a obra compõe, na parede da cidade, algo recorrente que, no entanto, quase sempre passa despercebido. Obviamente que o invisível da imagem não está nos dois indivíduos, rendidos no muro, em posição de revista.

A cena é familiar: uma batida policial. E normalmente, quando nos deparamos com batidas policiais, esticamos o pescoço e esbugalhamos os olhos à procura dos detalhes, manchas de sangue, o bandido e a vítima, indícios do crime... Assim como nos acidentes de trânsito, quantas vezes um imenso engarrafamento não é metodicamente construído por conta da insaciável curiosidade humana? Basta uma luz de sirene para o demônio do voyeurismo mórbido despertar do fundo de nossas entranhas – lotadas de solitárias existenciais.

Mas voltemos ao invisível do grafite. Se de fato temos a ilustração de uma batida policial, a pergunta é: cadê a polícia?

Ela não se encontra representada na figura. Na verdade, ela está nos olhos de quem observa a cena. Só pode ser construída com a participação do observador. E expressa a naturalidade com que criminalizamos aqueles que, por serem pobres, podem ser humilhados à luz do dia – ou na escuridão da noite.

Quem disse que são criminosos? Como inferir que em suas bolsas carregam uma ameaça à ordem pública? É evidente que, inúmeras vezes, batidas policiais são mobilizadas com base em informações concretas e precisas. Assim como o contrário, fatalmente, ocorre a todo instante. Na mesma proporção?

A inteligência do grafite está em aproveitar a facilidade com que as pessoas, cada vez mais assoladas pelo medo, incorporam uma espécie de paranoia (por que não, fascista?), sobretudo, característica de quem não é pobre – ou, ao menos, não pretende assumir-se como tal.

Esse pânico coletivo alimenta um fascismo que habita não apenas as telas da televisão, com seus programas sensacionalistas, mas também a própria cabeça do dito “cidadão de bem”? Por que será que o Capitão Nascimento foi coroado pela revista Veja como o primeiro super herói brasileiro?

Cabelos desgrenhados, chinelo havaiana, blusa de capuz... Os Gêmeos grafiteiros exploram a ambiguidade de significações que estas vestimentas podem assumir. Uma havaiana pode ser chic, brega ou sinal de perigo: depende de quem usa, quando e onde.

Infelizmente, a sentença é sumária: pobre é pobre, playboy é playboy. De maneira enigmática, em geral, basta uma simples batida de olho para o veredito consumar-se. E às vezes, a cor da pele pode até facilitar.

Consciência “infeliz”

"Quando estou distraído no semáforo
e me pedem esmola
me acontece agradecer."
–Chico Alvim | Acontecimento

"Office in a Small City" (1953), Edward Hopper
"Office in a Small City" (1953), Edward Hopper

Segundo dados do IBGE, cerca de 60% da população brasileira sobrevive com até dois salários mínimos. Isso inclui gente miserável (em torno de 16 milhões), além dos pobres, nas diferentes escalas. Quantos deles vivem na ilegalidade? Tudo depende do ponto de vista. Se pensarmos o ilegal como as atividades criminosas que povoam o imaginário convencional (roubos, sequestro, tráfico de drogas, etc), dificilmente atingiremos a marca de 1%.

Considerando, contudo, os Direitos Sociais que constam na Constituição Federal de 1988, o percentual de pobres ilegais é de 100%. Afinal, se levarmos a sério o que está constitucionalmente definido, a própria pobreza, nos níveis em que se apresenta no Brasil, não seria ela mesma uma ilegalidade?

Para muitos, tal pergunta pode até soar como retórica. Mas para cerca de 110 milhões, talvez ela faça sentido. Em todo caso, para nós, a questão é outra. O que esperar desse exército de gente? Subordinação ou revolta? Desespero ou paciência?

É provável que a maneira menos desonesta de encararmos isso é respondendo o que não queremos. Ora, não queremos que apontem um cano para nossas cabeças e tomem à força nossos preciosos bens. Não queremos que estudem em boas escolas e concorram de igual para igual nos vestibulares. Não queremos que ascendam socialmente e conquistem todos os cargos de liderança. Não queremos que abandonem seus postos de trabalho pesado, precário e mal remunerado.

Enfim: não queremos que deixem de ser absolutamente exploráveis... Afinal, somos incorrigíveis, não é mesmo?


publicado em 06 de Julho de 2012, 08:58
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Christian Gilioti

Formado em Filosofia pela USP. Durante a graduação, atuou paralelamente em museus e centros culturais. Atualmente é professor de filosofia no ensino médio, pesquisador de manifestações artísticas contemporâneas e coordenador de projetos pedagógico-culturais.


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