Meu apartamento tem senzala

Você já parou para refletir sobre o que é uma “dependência de empregada”? Em certo sentido, talvez seja um exagero comparar um assalariado que mora no local de trabalho por conveniência a um regime de escravidão. Por outro lado, talvez a comparação seja interessante.

Meu apartamento fica em um condomínio de classe média baixa próximo ao Estádio Beira Rio, em Porto Alegre. É um prédio com em torno de 40 anos de idade. Tenho 77 m², divididos em dois quartos, sala, banheiro “social”, cozinha, área de serviço e uma “dependência de empregada” de 7 metros quadrados com seu próprio banheiro.

Observando essa “suíte” da empregada é que comecei a refletir sobre a estratificação de classe no Brasil, e o quanto ela mudou em 40 anos.

Hoje em dia, a maioria de nós que não é abastado o suficiente para possuir um staff, ou idoso precisando de assistência 24h, não anseia por um empregado que viva em nossa casa. Primeiro porque isso felizmente está mais caro, segundo porque não estamos mais tão preparados ao distanciamento necessário para conviver, num espaço tão exíguo, com alguém que, culturalmente, também felizmente, já não é tão desigual. Em outras palavras, hoje em dia é cada vez mais esquisito uma família vivendo num apartamentinho conseguir conviver com “a ajuda”, e não é apenas uma questão econômica, mas de mudança de mentalidade. Quanto mais a classe média limpa a própria sujeira, mais civilizada uma sociedade parece ser.

A arquitetura da casa grande e senzala está, felizmente, ultrapassada. Eu gostaria de reformar esse banheiro para uso “social”, e deixar o banheiro atual para os quartos, mas isso é impossível, ou ao menos muito difícil, com a cozinha no meio.

O banheiro possui uma privada e uma saída para chuveiro e ralo bem ao centro, sem separação entre a privada e um possível box. Supunha-se que a pia utilizada para lavar as mãos fosse justamente a pia da área de serviço. Para que outra? Hoje esse “luxo” do senhor se isolar da higiene da criadagem se torna um estorvo, um desperdício de espaço, um bilhete irônico da história. A janela da dependência de empregada é que nem janela de banheiro, que abre umas 3 esquadrias de metal com vidro com uma alavanca. Ela não fica completamente aberta. Não dá para olhar para fora ou para dentro. Só serve para circulação do ar e é  1/4 do tamanho das outras janelas da casa.

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Antes de qualquer "solução" que você queira dar pra aquele espaço, ele sempre foi o "quartinho da empregada"

Há uma segunda porta de saída no apartamento, justamente pela cozinha. No entanto, tanto a porta “social” quanto a da senzala (como eu chamo o conjunto cozinha, área e dependência de empregada aqui em casa) saem para o exato mesmo corredor. A construção não é de nível suficiente para isolar as saídas, é um edifício bem simples; na verdade, para um senhor bem modesto, de apenas um escravo.


publicado em 26 de Março de 2014, 07:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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