Medo de voar? (Não) Leia este texto

Existe uma pesquisa feita pelo IBOPE em 2007 que diz que cerca de 74% dos brasileiros têm medo de voar. Pessoas que só de pensar em estar em um avião são invadidas por um mal estar e ansiedade imensas.

Apesar de achar que viajar é um dos principais prazeres da vida, eu pessoalmente nunca gostei de estar a bordo de um avião. A sensação de ter a sua vida na mão de um estranho é horrível. Você está impotente e passivo, e sua vida depende de dois sujeitos que você nunca viu e em cujas credenciais você só pode confiar cegamente. É só entrar naquele tubo voador e pronto: todos os detalhes adquirem o potencial de mudar a sua vida – e o pior é que você não pode fazer nada. Tudo o que acontece na cabeça de um cagão como eu tem um significado e forma as minúcias da tragédia que, até onde me consta, está por acontecer.

A história que se segue é baseada na minha própria experiência e não reflete a realidade da minoria corajosa da população voadora brasileira. Seus sortudos.

Todos a bordo da minha mente

Eu saio do táxi e as portas automáticas do saguão se abrem para um momento que vai mudar a minha vida para sempre. No balcão de check-in, com o voucher impresso em preto e branco, a atendente pergunta:

– Qual o destino, senhor?

– Vou pra Nova York.

Segundos depois de checar meus dados, passaporte e bagagem, ela diz, com toda a calma do mundo, como se aquele não fosse um dos meus momentos finais:

– Senhor, seu voo é JJ8102. O portão de embarque é o 6, esteja na sala de embarque 50 minutos antes do horário de partida, boa viagem.

Ela pega uma caneta e circula o meu portão de embarque e horário com a naturalidade de um coveiro cavando o próximo túmulo. Ela faz isso todo o dia. Não demonstra emoção e não me diz adeus.

JJ8102. Essa sequência é que vai mudar a minha vida pra sempre. Já vejo as chamadas dos jornais do dia seguinte: "Voo 8102 cai com 450 passageiros. Não existem sobreviventes”. Meus pais e irmãos farão parte da Associação dos Familiares do Voo 8102. Minha primeira atitude é mandar um SMS aos meus pais e namorada, com tranquilidade e um tom informativo. Meu sentimento é de sobriedade com relação ao que vai acontecer nessas minhas últimas horas.

“Pronto para embarcar. Meu voo é 8102. Às 6 da manhã (Brasil) estou lá. Eu aviso quando chegar, beijos.”

Eu não posso desesperar ninguém. As palavras “friozinho na barriga”, “pressentimento” e “medo” não são pronunciadas desde a semana passada. Tenho a esperança de que nada vai acontecer, mas me mantenho preparado. Meus entes queridos agora também estão.

Chegando na sala de embarque, começo a notar as pessoas. Todos à minha volta serão meus companheiros na lista dos desaparecidos ou mortos. Entre eles, encontram-se uma variedade de perfis sociais e demográficos que serão um prato cheio para a Veja da próxima semana. Executivos, grupos de estudantes, mochileiros, casais em lua de mel, idosos... E eu.

Um momento de alívio: uma família com três crianças pequenas chega na sala. Uns 4 ou 5 anos, cada. Deus não pode ser tão mau com essas pessoas. Seria muita maldade derrubar um avião com pessoas que acabaram de nascer.

De repente, minha tranquilidade momentânea é atacada pela cavalaria silenciosa da tripulação. Uma elegância funeral. Todas as maletas são iguais. Hierarquicamente organizados. Piloto e co-piloto, comissários e aeromoças. Cabelos impecáveis. Roupas mais bem passadas que o terno do João Doria Jr. E uma frieza assustadora.

Eu tenho um dom e não sabia. Consigo fazer uma análise psicossociológica comportamental do piloto em menos de dez segundos. A lógica é simples:

Mais de 50 anos: Muito experiente, confiante e desleixado. Encara aquele momento como qualquer um, não se lembra que está pilotando uma arma de alta periculosidade. Conhece toda a aeronave de cabo a rabo e por isso pode esquecer de ligar o transponder. (Lembra?)

Menos de 30 anos: Pouco experiente, não conhece tudo o que vai encarar e já vai pegar um voo de 11 horas? Solteiro. Veio o caminho todo conversando com uma mulher no telefone. Certeza de que passou a noite em claro e não conseguiu descansar. Muita irresponsabilidade da companhia aérea deixar um cara como esse decidir o rumo de nossas vidas.

“Atenção passageiros do voo JJ8102 com destino a Nova York. Favor dirigir-se ao portão de embarque número 6. Seu embarque está sendo iniciado.”

Minha mão já não está suada. Agora suados estão meu passaporte e o ticket de embarque. Minha mão está encharcada.

Entramos em fila indiana procurando o assento, parecendo o corredor da morte travestido de início de férias. Como eu tenho certeza de que vou bastante ao banheiro em 11 horas, escolhi o 26F, corredor. A aeronave já está abarrotada, todas as malas socadas. Tem muita mala no compartimento superior, e o cara ao meu lado está usando todas as forças para colocar um pacote de pelo menos 40 quilos em um espaço de 30x60 cm.

YouTube | Pelo menos ninguém aditivou o café da equipe de bordo

Quando ainda existe esperança de sair vivo daquele tubo voador, noto o que seria a certeza do desastre. Não tem ninguém no assento 26E.

Já imagino esse desgraçado dando entrevistas nos jornais, falando que perdeu o voo e que o destino salvou a vida dele. Jornal da Globo, Jornal Nacional, Folha de São Paulo etc. Todo mundo espantado como o destino foi bom com ele. E logo ao meu lado! Não podia ter sido eu?

“Tripulação, portas em automático.”

A aeromoça tem uma dificuldade danada para baixar aquela porta gigantesca, e eu tenho a impressão de que ela não sabe o que está fazendo. Já viu um daqueles filmes em que a porta se desprende em pleno voo e a despressurização joga todos para fora? Pois é, estou preparado para isso agora.

“Bem vindo a bordo. É um prazer tê-los conosco neste voo São Paulo – Nova York das Linhas Aéreas Fulanas. Esperamos que tenha uma ótima viagem.”

O que em minha mente quer dizer:

“Bem vindos aos últimos momentos de sua vida. Estamos confiantes de que serão muito bem aproveitados com uma pequena refeição de massa ou frango, banheiros apertados e ar condicionado bem gelado.”

De repente escuto o piloto anunciando as condições metereológicas. É hora do desespero entrar em cena de vez. As condições metereológicas estão ruins em Nova York. Nevasca forte. Devemos atrasar. Porra, é Janeiro! Óbvio que está nevando naquele lugar! Por que não interrompem os voos? Não dá pra adiar pra Abril? Que tal pousar em Miami e fazer o resto do caminho por terra?

“Senhores passageiros, por favor, coloquem suas poltronas na posição vertical e prendam seus cintos de segurança. Em alguns momentos estaremos iniciando os procedimentos para a decolagem.”

Essa regra é universal, todo mundo tem um pouco de medo de decolagem. As pessoas simplesmente ficam tensas, todas elas. Eu fico mais, claro, mas pelo menos não me sinto tão sozinho.

“Desliguem seus aparelhos eletrônicos até o momento da aterrissagem.”

Sempre, sempre tem um destemido highlander dos ares que mantém o celular ligado até o último momento, respondendo e-mails, SMS etc, pouco se importando com o risco iminente da morte. Eis que a aeromoça passa próximo a mim e a senhora sentada ao meu lado faz um sinal. Assim que a atendente chega, ela sussura: “aquele moço não desligou o celular”. Ela está tão borrada quanto eu, só encontrou uma outra maneira de externalizar isso. Eu fico eternamente grato à senhora delatora e lhe cumprimento com um mini sorriso que deixa implícito: “obrigado por salvar 449 vidas”.

A decolagem é um momento especial. Nas últimas vezes que voei me tranquilizei olhando para fora, vendo em detalhes que o avião não está caindo quando ele finalmente para de se projetar para o alto e começa a voar paralelo ao chão. Essa é uma estratégia boa, mas não quando o cara que está na janela fecha a escotilha. Eu, sem nenhuma ferramenta tranquilizadora, fico só no feeling da subida da aeronave. Quando ela finalmente estabiliza no ar: músculos tensos, seguro na poltrona, frio na barriga e leve dormência nas pernas. Quando percebo que nada está caindo do teto e que não ocorreu despressurização, me sinto mais confortável.

A sensação de “tudo está sob controle” acontece aproximadamente cinco minutos depois da decolagem, quando escuto o som dos banheiros liberados e vejo os comissários se movimentando. “Deve estar tudo certo.”

Daí por diante o que se segue são análises baseadas em estudos básicos de engenharia e aviação civil que fazem com que eu identifique qualquer tipo de barulho como uma potencial tragédia. O som da turbina nunca pode mudar de ritmo. Os compartimentos de bagagem fazem ruídos que mostram o quanto o avião está desestabilizado no ar e quão vulnerável essa máquina é quando está próxima de Deus. Cada fechamento de gaveta das aeromoças dá um frio na espinha. São os sons da morte anunciada.


YouTube | "Seguros de vida pagam o triplo se você morrer em viagens de negócios"

Não contei que tomei um Dramin na sala de embarque. Esse pós-tensão que rola depois da permissão para soltar os cintos gera um sono quase instântaneo.

Cochilei e acordo bem próximo a Nova York. O tempo já melhorou. Agora só neva muito e a pista só está assustadoramente perigosa. Mas, honestamente, sou muito corajoso no momento da aterrisagem. Por já estarmos bem próximos, tenho a impressão de que nenhum acidente na chegada é fatal. Mesmo assim, ainda tem a famosa:

“Senhores passageiros, por favor, coloquem suas poltronas na posição vertical e prendam seus cintos de segurança. Em alguns momentos estaremos iniciando os procedimentos para a aterrisagem.”

A reversão das turbinas – o último momento. A hora de você pensar “porra, já fez tudo isso, não vai dar merda agora, né?” Todos os seus pensamentos são com relação ao cumprimento da pista e o quanto esse cara pode ter problemas de freio na hora da chegada. O barulho ensurdecedor das turbinas trabalhando para parar aquela merda é como se fosse a sua música preferida em alto e bom som dizendo:

“Bem vindo ao resto da sua vida, aproveite.”

Nada aconteceu, óbvio. Nem vai acontecer com muitos de nós. Os acidentes por milhão de decolagem nunca foram tão baixos na história da aviação. Os instrumentos de segurança nunca foram tão precisos. O cara que perdeu o voo em São Paulo se ferrou. Eu cheguei em Nova York 11 horas depois de sair de São Paulo e sem a mínima dúvida de que os aviões são uma maravilha da engenharia, uma das melhores invenções da história.

Mas não tem barata, sapo, lobisomem, sucuri, aumento de imposto ou cara feia que me assuste mais do que voar.


publicado em 24 de Abril de 2012, 00:04
Ff96dc2d5b474026dcf1bd2d44b58c88?s=130

Fernando Vasconcellos

Publicitário, quer morar em todas as cidades que visitou de Budapeste a Nova York. Enquanto não tem dinheiro pra isso, gasta seu tempo achando que marketing resolve 90% dos problemas do mundo. Zagueiro com pouco talento.\r\nTwitter: @fvasconcellos


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura