Felizes os que se alegram com pouco | Cotidiano #21

Vivemos uma rotina de problemas a serem resolvidos e não aproveitamos os poucos instantes de felicidade. Um pouco sobre a nossa apatia que influencia nisso tudo

Vieram os três expressos e meu amigo se espantou. "Nossa, cara, que colher bonitinha. Olha, não é daquelas simplezinhas, veio toda desenhadinha. Que graça! Engraçado, né, parece coisa de bobo se espantar com o formato da colher de plástico".

E eu fiquei dias com aquilo na cabeça, do agrado que me foi perceber o pequeno arroubo do amigo ao ver a colherzinha e como isso é bom, faz bem. Fiquei matutando o terror do tédio, que felizes são os que justamente ganham o dia na colher de plástico e não na busca daquelas conquistas monumentais ou na prorrogação das pequenas poças de tesão que a vida nos dá.

Porque, claro, vivemos em um mar de pepas e precisamos aproveitar os respingos de delícia.

Que não seja entendido como pessimismo, mas um fincar de pés no chão para saber sair das chapas quentes que a gente se mete e para compreender logo de cara quando algo incrível está rolando, não para agarrá-lo pelos cabelos - o erro clássico que forma frustração, porque é fato que acaba, como tudo acaba - mas para apreciar e se esfregar ao máximo nesse momento bom.

Li, por esses dias, "queria tanto algo novo que até problema servia" e pirei mais ainda nessa coisa toda loca de delírios saborosos e tédio. A gente se entedia fácil demais e a apatia acaba, na busca de incredulidades e júbilos estapafúrdios (pedidos de casamentos inusitados, jantares nas alturas, um buquê se rosas de Marte, um filme em que o 3D dê um bom tapa real nessa nossa fuça) por esconder as pequenas gostosuras do cotidiano, do dia a dia, do agora. 

Como uma colher bonitinha.

E daí, pra fechar a absorção de informações que me fizeram refletir, li essa semana a boa entrevista do José Padilha, o dos Tropa de Elite e do Robocop, em que ele diz: "O Brasil perdeu a sensibilidade para o absurdo. A cidade do Rio de Janeiro é a barbárie. [...] é como se a gente estivesse no Central Park, em Nova York, e as pessoas que estão andando de bicicleta fossem esfaqueadas. Sabe o que ia acontecer? Ia fechar o Central Park, ia ter quinhentos policiais, não ia acontecer. Porque o sujeito que está em Nova York consegue ver o absurdo, a gente não consegue mais ver o absurdo."

O enfado se tornou indiferença. Pro café, pra porra da colher, pras pessoas que estão se fodendo. E vai além, porque a entrevista é interessante, mas com vários momentos inocentes e, mais ainda, elitista. Porque se fala dos amigos médicos e arquitetos e seus filhos. Fora o nosso incrível desprezo diário às mortes do dia a dia, da galera que estava voltando do trabalho e não pedalando na lagoa, e foi pego por bandido ou por policial ou por alguém que tava mamado demais e a cachaça impediu de frear na hora certa. 

Bobo?

Espertos são os que sorriem colheres e choram a banalidade da violência.


publicado em 19 de Junho de 2015, 00:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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