Feira de rua | Lugares #2

Feira de rua é encontro com dia e lugar marcado

Dos lugares que me encantam, a feira de rua é um deles.

Como todo bom encontro, acontece com dia e lugar marcado. Tem hora para começar, é um evento, um acontecimento. Não é estática como um mercado, uma loja, um shopping: dia de feira é dia certo, é reunião cultural em torno do que vai  nos reunir na mesa de casa.

Lugar de fartura, os valores e as quantidades são outros: não se compra uma fruta só. É bacia, quilo, dúzia, penca, pacote, caixote. Para experimentar tem melancia, mexerica, laranja, caqui e o caldo de cana já vem com chorinho. A cenoura com talo. A alface, no pé, embrulhada. Feira de rua é lugar de comida de verdade. 

Sacolas de lona, cestas de vime: por lá se anda com aparatos específicos e, sem querer, sustentáveis. Lugar repleto de gente arrastando carrinho de mão para abastecer geladeiras. Parece esquisito em tempos de supermercado, soa tão antigo, arcaico. Temos hortifrutis, hipermercados, lojas 24 horas… Se hoje se compra limão em pó, por que caminhar toda semana até a barraca mais próxima?

Pois feira de rua é lugar de vizinhança reunida. É sinônimo de rua ocupada: barracas, caixas, lonas, tudo tem espaço. Traz vivacidade à rua, gente para circular pelo bairro, mostra que o espaço público é flexível e adaptável. 

Frutas, verduras e legumes têm privilégios em cima dos tão estimados carros. Carro não manda quando a rua é de feira. Recado da humanidade para os dias de hoje: o coletivo vale mais do que sua individualidade.

Enquanto o mercado se mura, a feira te convida. Se um é padronizado, o outro trabalha no improviso. Pode ser desconfortável: assusta quem está acostumado com a privacidade da compra impessoal com ar condicionado.

E se a feira te apresenta a coletividade, também te respeita em sua individualidade: lá você tem nome, enquanto insistem em te chamar por "consumidor" no supermercado.

Não é shopping, em que você anda invisível, sem ser incomodado. Na feira de rua, a voz é alta e os descontos são combinados antes até de te verem interessado. Se cumprimenta com bom dia, tem gracinhas, piadas e barganhas. 

Se um supermercado não tem dono que a gente consiga olhar no olho, a feira tem em cada barraca um proprietário. A relação é estreita, sem intermediários: ele é produtor, comerciante ou funcionário e trata seu dinheiro ali centavo por centavo. Se a conta deu doze, dá para arredondar pra dez. Se levar mais meia dúzia, dá pra fechar por quinze, sem precisar consultar o gerente. A arte perdida da sedução do outro: na feira seu dinheiro é concorrido, sua atenção é disputada. Tem quem conte história, tem quem ofereça um pedaço: a relação é lúdica, somos parceiros. O marketing é a confiança que dita a compra, dá desconto, vende fiado e garante que o morango está doce sim, pode ser levado. 

Feira é lugar de ir para conhecer o outro. Levar criança para conhecer o nome das frutas, as cores das folhas, os olhos dos outros. Mostrar que a compra é um acontecimento necessário e que comida de verdade não vem com código de barra.

Feira de rua é o lugar.

* * *

"São Paulo se jecaliza cada vez mais rapidamente e o comércio meio que já nasce adequado aos novos ricos , com seus sorrisos que mais lembram os das enfermeiras. Triste é a cidade que abandona o clássico para o tal do progresso, se é que cabe esse termo. São Paulo é a prova viva de que o homem é vítima de uma trajetória, que não é sinônimo de evolução." 

Julio Bernardo, em Dias de Feira, traz em contos cruéis, poéticos e engraçados os bastidores da feira livre.

A feira livre é um dos espaços urbanos que gradativamente estão sendo esquecidos.  A feira é uma maneira acessível de todos comprarem sem ter de passar pelo critério das grandes redes de supermercado. É importante, Vá Pra Feira.

Sobre a série "Lugares"

Mais do que defender um retorno romântico ou a construção de locais específicos, a proposta desta série é descobrir realidades internas de cada lugar, retratar processos de relação que talvez estejamos perdendo e imaginar como podemos incorporar essas qualidades em nossos relacionamentos atuais, aqui, aí, nos lugares que já habitamos.

Quer colocar isso em prática?

Para quem está cansado de apenas ler, entender e compartilhar sabedorias que não sabemos como praticar, criamos o lugar: um espaço online para pessoas dispostas a fazer o trabalho (diário, paciente e às vezes sujo) da transformação.

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publicado em 11 de Março de 2015, 11:36
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Isabella Ianelli

Pedagoga interessada em arte e educação. Escreve no blog Isabellices e responde por @isabellaianelli no Twitter.


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