De portas abertas, conto

Amanda e eu nos conhecemos na boate. Não dentro: na porta.

Eu pastoreava uma matilha de amigos, todos pavlovianamente vestidinhos no melhor estilo da estação, e só eu de roupas coloridas. Amanda nos relanceou um olhar e sentenciou: todos entram, menos o aloha. Camisa florida aqui, nunca.

Eles escorraçaram-se para dentro e eu não ranqueei um segundo olhar de Amanda. Resignado, carreguei minhas frustrações para casa.

Correram algumas semanas e a tribo decidiu, num supetão, voltar à boate. Como sempre, eu estava fantasiado de eu-mesmo e carimbei: aquela ruiva vai me deixar na porta de novo. Eles me tranqüilizaram: imagina!, se eu fosse barrado, iríamos todos para outro lugar, e muito melhor!

Amanda me farejou de longe e não tirou as narinas de mim. O pessoal pressentiu: a ruiva da porta está toda aberta pra você. Assentamos mais de hora na fila e Amanda sempre me desviando olhares sonegados. Quando chegou nossa vez, chicoteou: os amiguinhos com estilo, entram, o camisa-florida, fica. E não me olhou mais.

Os amiguinhos, aqueles putos, nem tossiram: tinham esbarrado com a Alicinha na fila, combinaram de se esbarrar mais lá dentro, e você viu a bunda da Alicinha hoje?, não podiam deixar a bunda da Alicinha na mão!, e entraram. Eu, mais uma vez, me deportei de volta pra casa.

No mês seguinte, meus mui-amigos planejaram com antecedência uma nova ida à boate. Eu não queria participar, mas houve pressão. Aparentemente, a bunda da Alicinha estaria lá. Por sorte, tia Eulália morrera no ano anterior e eu tinha algumas roupas escuras no armário.

Depois da hora ritual de fila, os suplicantes chegaram diante do oráculo. Os olhos de Amanda sussurraram, discretíssimos, que me reconheciam, mas o resto de seu corpo preferiu não se comprometer. Fez um gesto soberbo e ganhamos entrada, sem burocracias.

Tirando o bundão da Alicinha - realmente fenomenal, mas melhor apreciado diariamente, de nove às onze, no posto seis - a boate era a estampa de qualquer outra: escura, ensurdecedora, emaranhada, esfumaçada.

E, por entre a fumaça, logo vi o cabelo malagueta de Amanda marchando com diligência, olhando para o escuro, estalando os saltos. Pensei: está à minha espreita! Mas não: ventou por minha mesa duas vezes e não fez nada. Por fim, fez. Ocupou a cadeira à minha frente e desferiu: eu não devia ter te deixado entrar. Você nessas roupas é a profanação de um lugar sagrado. E a culpa é minha. Daqui a duas horas, o movimento some e eu estou liberada. Me espere aqui e vamos entrar em um lugar muito melhor. E entramos.

a porta.

Nossos dois anos de casamento foram delirantemente felizes, até o dia em que eu estava tomando banho e ouvi, por entre a água, o som da chave na fechadura. Só Amanda tinha a chave. Fechei a água e chamei: Amanda? Ela uivou: sou eu, sou eu, abre a porta, por favor, me deixa entrar. Tudo bem?, eu quis saber, ainda no chuveiro. A essa hora, ela deveria estar no trabalho. E por que sua chave não funcionava? A resposta veio num estalo: abre essa porta agora, rápido.

Pinguei pelo banheiro, correndo, mal encostando a toalha no corpo, tocou o telefone e nem atendi, mas a secretária atendeu:

Alô? Tem alguém em casa?, implorou a voz. Era Norma, colega de trabalho de Amanda. Atende, por favor, suplicou e, então, desabou: meu deus, não sei o que fazer, a Amanda, ela, nós estávamos tentando entrar no ônibus, o motorista não parou, ela foi correr atrás, tentou pular pela porta aberta e o motorista fechou a porta na hora, ela ficou com o braço preso, foi sendo arrastada, meu deus, meu deus!, e eu, já enxuto, me aproximei do telefone, mas não atendi, olhei a porta, mas não abri, coloquei a mão sobre a secretária e senti sua vibração: eu corri atrás do ônibus, não acredito que estou contando isso para uma secretária, você não está aí?, não sei o que fazer, eu corri atrás do ônibus, vi a Amanda sendo arrastada pela rua, ela gritou o tempo todo, eu também, os passageiros gritaram, mas o motorista não parava, não parava, até que parou, parou e fugiu, estou aqui do lado do corpo, preciso de voc-clique.

No silêncio, ouvi a respiração canina de Amanda do outro lado e caminhei até lá. O som do meu celular tocando chamou sua atenção e ela se achegou à porta, me deixa entrar, por favor, eu preciso entrar, eu preciso te ver, e passou os dedos sensualmente em volta do olho mágico, como se alisando meu rosto, aqueles dedos de unhas longas e negras que sempre me excitaram.

Acariciei a maçaneta, que soluçou mecanicamente ao meu toque. Amanda eriçou as orelhas e ganiu: por favor, eu não quero ir embora, você prometeu que iríamos ficar juntos pra sempre, que me protegeria e me acompanharia, não pode me largar aqui fora, eu te peço.

Me espalmei contra a porta como uma lagartixa e fiquei apreciando Amanda, registrando cada poro, cada pestana, sentindo ainda o aroma cítrico do seu sabonete de limão, embalado pelo som impotente da chave na fechadura, chorando lágrimas secas.

Algum tempo depois, sumiu. Só fui vê-la de novo quando reconheci o corpo.

* * *

"Onde perdemos tudo", contos de Alex Castro

Onde perdemos tudo, livro de contos de Alex Castro

O conto "De portas abertas" faz parte do meu livro Onde perdemos tudo. São cinco contos unidos pelo tema comum de perda: perda de amizades, perda de amores, perda da vida. Compre aqui.


publicado em 01 de Janeiro de 2013, 22:01
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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