Da gentileza social, da garotinha chinesa e da sociedade das mãos não estendidas

Mesmo tendo nascido no Rio eu, bem cedo, me mudei com meus pais pra uma cidade mineira chamada Juiz de Fora. Para os que não conhecem, Juiz de Fora é uma cidade relativamente grande, com mais de 600 mil habitantes, longe daquela ideia que algumas pessoas tem de que Minas Gerais toda é um imenso sítio e nós mesmos tiramos nosso leite e fazemos nosso pão, mas que em alguns aspectos ainda tem um pouco aquele ar de interior, com pessoas sentadas numas pracinhas, crianças brincando numas ruas e coisas assim.

Tendo morado lá, nesse ambiente calmo e bastante seguro, durante basicamente toda a minha idade de formação, eu desenvolvi alguns hábitos que podem ser considerados típicos das pessoas que vieram de cidades menores. Eu cumprimentava o motorista quando saía do ônibus (lá a gente saía pela frente), eu dava bom dia para desconhecidos em bancas de jornal ou dentro de lojas, eu parava pra dar orientações ou responder as horas pra qualquer pessoa que me perguntasse e ajudava idosos ou deficientes visuais que precisassem de auxílio para atravessar a rua.

E não, nada disso porque eu sou um cara excepcionalmente bacana, um ser humano absurdamente legal ou uma pessoa muito ciente dos meus deveres e responsabilidades cívicas, mas apenas porque foi assim que eu vi todos fazendo, assim que eu aprendi que deveria ser feito e assim que provavelmente todos esperavam que eu fizesse. Eu apenas era fiel ao meu ambiente, num certo grau.

"Deixa, senhora, que eu levo pra você"

E o mesmo valeu pro meu período em Viçosa – outra cidade mineira, menor ainda – onde eu fiz amigos em pontos de ônibus, dei carona no táxi pra desconhecidos, entrei em caminhões com pessoas estranhas e levei gente que nunca tinha visto pra hospitais após festas onde a galera abusou demais. De novo, era o espírito do local, era praticamente a zeitgeist daquele lugar e daquele período. Mais ou menos como numa tabuleta de pub, não tínhamos estranhos e sim amigos que ainda não se conheciam, algo assim.

Mas depois de formado eu comecei a procurar emprego, viajar mais, sair daquela bolha do interior mineiro e, com dois ou três dias em São Paulo, numa ida ao centro com a minha ex-namorada, fui abordado por um cara pedindo informações. Prestativo e solícito – o que nem fazia sentido se for levar em conta que eu tava na cidade há 48/72 horas – me aproximei apenas para ter uma arma apontada pra mim e perder todo o dinheiro da carteira, enquanto minha namorada perdeu dinheiro, celular e passou ao menos umas semanas com medo de sair na rua, assustada com a possibilidade de que aquilo acontecesse novamente.

Resultado: hoje eu sou muito mais defensivo com estranhos, muito menos prestativo com as pessoas em geral e antes de parar pra falar com qualquer um na rua eu faço uma breve análise mental dos resultados de um conflito com essa pessoa, nos termos de “força x velocidade x objetos que estamos portando”, além de sempre ficar desconfiado se aquela pessoa que eu estou ajudando a atravessar realmente não enxerga ou é tudo um golpe mais elaborado.

Mas por que toda essa história? Porque hoje, lendo a notícia da garotinha chinesa que foi atropelada e ficou durante vários minutos estendida no chão sem que nenhuma pessoa se dispusesse a ajudar e vendo que aparentemente a justificativa das pessoas pra esse tipo de omissão foi o fato de que, por conta das leis chinesas relacionadas a vítimas de acidentes, qualquer tipo de intervenção poderia resultar em processo, eu acabei, mais do que culpando a “frieza do povo chinês” ou “os males do regime comunista” pensando em como as duas atitudes, a minha e a dessas pessoas, são parecidas, ao menos num certo grau.

Não que eu ache que algum dia vou ser capaz de não ajudar uma criança machucada na rua, mas conceitualmente a motivação, seja quando você deixa de orientar um recém-chegado por medo de ser assaltado ou quando deixar de assistir a uma criança que sofreu um acidente por medo de ser processado, é basicamente a mesma: considerar que o bem-estar do próximo não vale a possibilidade de colocar o seu bem-estar em risco.

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E claro, a criança é o exemplo extremo. Ela é frágil, ela é indefesa, ela é aquilo que nós temos o maior comando moral – e até biológico - de proteger. Por isso quando todos nós vemos o vídeo, lemos a matéria, ouvimos falar sobre o acontecido, a nossa reação também é extrema, pelo choque, pelo absurdo evidente dos fatos. Mas se formos pensar, vários de nós, diariamente, tomam várias pequenas atitudes comandadas pelo mesmo tipo de imperativo. Ouvimos um grito e corremos na direção oposta, vemos alguém caindo e não ajudamos pra não perder o ônibus, vemos uma pessoa precisando de ajuda e não nos aproximamos por desconfiança.

Não, não que eu esteja dizendo que devemos prioritariamente colocar a vida do próximo a frente da nossa, que devemos deixar as portas de casa abertas para estranhos, ou mesmo que você deveria parar pra conversar com aquele desconhecido de gorro, casacão e mãos no bolso que parou pra te abordar pedindo um cigarro no meio da madrugada, não é exatamente isso. Apenas pode ser que é em momentos assim, quando tendências que ainda pareciam dormentes acabam se apresentando de forma absurdamente clara diante dos nossos olhos, talvez seja uma boa hora pra uma análise dos hábitos, das ações, das normas que vem guiando o comportamento de todos nós.

Provavelmente existem coisas menores que nós podemos fazer. Ajudar alguém, ser menos defensivo com uma pessoa estranha, estar mais disposto a colaborar com o outro, pensar um pouco menos em si em ocasiões em que isso for possível, lembrar que em algum momento podemos estar do outro lado. Porque, afinal, perdemos a nossa capacidade de nos chocar com esses pequenos egoísmos do dia a dia e pode ser uma boa hora pra corrigir a rota antes que a gente não se choque mais nem com os grandes.


publicado em 20 de Outubro de 2011, 09:57
Selfie casa antiga

João Baldi Jr.

João Baldi Jr. é jornalista, roteirista iniciante e o cara que separa as brigas da turma do deixa disso. Gosta de pão de queijo, futebol, comédia romântica. Não gosta de falsidade, gente que fica parada na porta do metrô, quando molha a barra da calça na poça d'água. Escreve no (www.justwrapped.me/) e discute diariamente os grandes temas - pagode, flamengo, geopolítica contemporânea e modernidade líquida. No Twitter, é o (@joaoluisjr)


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