Criticar o capitalismo não é coisa de comunista | WTF #75

O quão ruim é diminuir a crítica ao capitalismo com simplificações de comparação aos experimentos comunistas/socialistas do século passado

Criticar o capitalismo não é automaticamente validar os experimentos comunistas/socialistas do século XX.

Essa é da série “coisas que não precisariam ser ditas não houvesse tanta gente desatinada no mundo”. Porém, fora a estultícia, há mesmo uma possibilidade de uso ideológico do discurso, no sentido de que, tanto na esquerda quanto na direita, o argumento oposto naturalmente tende a ser estereotipado de acordo com propaganda. E assim o parvo acaba mesmo muitas vezes sendo apenas massa de manobra. Um tolo “qualificado”.

Em ambos os lados existe tanto a efetiva manipulação organizada da informação, quanto crítica com relação a “ideias de conspiração” – que podem ser exageradas, é claro, mas que sem dúvida orgânica ou deliberadamente vez após vez se manifestam na forma de manipulação do consenso e da polarização.

Ainda assim, efetivamente, podemos chamar de simplório ou sem discernimento – no sentido de ingênuo e participante nas formas mais degradadas de articulação intelectual – aquele que ao menor movimento de crítica ao status quo, elenca dezenas de exemplos irrelevantes de eras priscas e contextos desconexos.

Ponto em questão: a crise ambiental.

No espectro conservador é claro que encontramos aqueles que negam a mudança climática antropogênica, e que imediatamente saltam para argumentos secundários ou terciários quanto a essa questão pontual. Ora, de tempos em tempos aparecem milhões de peixes mortos “sem motivo”, vaza óleo, radiação, cidades inteiras se intoxicam com cádmio, os índices de agrotóxicos se revelam absurdamente altos, incêndios florestais se alastram ou, como agora no Brasil, aparece “do nada” essa lama de metal pesado, que ninguém sequer considerava ou sabia da existência até ela se tornar mais que evidente.

Mar de Regência é tomado por lama de barragem da Samarco (Fernando Madeira/A Gazeta)

Não precisamos do argumento mais amplo da questão do carbono na atmosfera – que é certeiro e indiscutível para quem quer que não afirme algo do tipo “olha, eu não sou cientista, mas...” – basta qualquer uma dessas especificidades que se acumulam: observar a qualidade do ar e da água em sua cidade, ou mesmo apenas olhar com olhos de quem vê uma cidade grande do alto de um avião.

O fato inconteste é que o ser humano causa um bocado de impacto. Isso é evidente demais para qualquer um que não delire sonhos oitocentistas de progresso da ciência em que se pode ficar jogando qualquer coisa no ar, na água ou na terra sem tentar vislumbrar a teia de interdependências de cada ação sobre os outros seres, em longos prazos, e além da mera visão econômica. E volta e meia o papicho ainda é: “tem regulação demais”, “esses ecochatos estão atrapalhando o progresso” etc. Quando isso não vem de um corpo político, que é necessariamente patrocinado, vem de um simples ou qualificado: um insensato que apenas repete e expressa disparate, ou um despropositado que é mera massa de manobra de alguma manipulação de consenso.

E aqui temos a primeira crítica ao capitalismo: “o capitalismo funciona”.

O capitalismo “funciona” mesmo. Mal e parcamente, com oscilações incompreensíveis, no espectro diminuto de fatores que o próprio capitalismo escolhe como índices. É preciso repetir: trata-se de uma ideologia. A economia existe, a livre iniciativa e os incentivos existem – em certos sentidos, e com certos limites, a ideia de “mercado” pode ser uma coisa valiosa – mas os valores implícitos no capitalismo enquanto ideologia estão em simples desacordo com a sobrevivência da espécie. E lembrar ou esclarecer as pessoas sobre isso é crucial.

Então aparece um bronco para dizer “ah, mas a União Soviética foi um fracasso”, ou mandar o interlocutor para Cuba em 1960, ou falar de atualidades da China ou do governo brasileiro. Como se todas essas coisas tivessem algo em comum entre si, e com qualquer crítica ao capitalismo. Ora, mesmo sem postular uma alternativa particular à ideologia dominante – muito menos uma alternativa de 100 ou 200 anos atrás – criticar o que é realmente relevante na atualidade permanece essencial. Mais essencial ainda, uma vez que as tentativas de substituir ou delimitar essa ideologia dominante têm fracassado, e certos problemas tão evidentes – como a questão ambiental, ou o aumento da desigualdade – se tornam cada vez mais urgentes.

Albatroz do Oceano Pacífico morto com a barriga cheia de plástico jogado no mar (Chris Jordan)

Evidentemente que a União Soviética comunista matou quase todas as baleias e direta ou indiretamente causou os maiores acidentes ligados à energia nuclear. A consciência ambientalista surge concomitantemente, em termos mundiais, juntamente com o período final e menos sinceramente engajado do projeto comunista no leste europeu. Além disso, sem de forma alguma querer defender essa alternativa e crítica ao modelo capitalista, é preciso reconhecer que os desenvolvimentos tecnológicos que causaram grandes desastres surgiram em franca competição e comparação com o capitalismo – numa relação com ele e com o mundo todo. Não foram, portanto, meros objetivos próprios à ideologia comunista – com todas suas efetivas imperfeições no ideal ou no real – mas coisas que surgiram também devido a uma conjuntura mundial, que incluía o capitalismo, a guerra fria, e a manipulação ideológica dos dois lados.

Precisamos mesmo ainda discutir o comunismo soviético? Tem mesmo qualquer relevância para o cenário atual? Ou será algo de que apenas admirador de escritor astrólogo fringe se ocupa? É mais um jeito de desviar a conversa, e de desqualificar o crítico do capitalismo, que tenta trabalhar para melhorar e transformar o que se apresenta como problema no contexto mais pragmático e atual.

Se vamos mesmo partir para os defeitos do certamente muito defeituoso pensamento marxista e de suas tentativas de aplicação certamente ainda mais problemáticas, podemos também, sei lá, falar de algo como o macarthismo. Mas que relevância teria para um mundo em que todos são consumidores vorazes e há corporações bélicas com o maior lobby e o maior orçamento? Se alguém reclamar da invasão de privacidade do NSA e outra pessoa disser “ah, mas tu preferias então a KGB, cara?” o mais acertado é simplesmente considerar que temos mesmo aí um desvairado.

O problema da crítica ao capitalismo é bem outro. Não tem a ver com o antigo leste europeu, por mais que no Brasil gente que se considera alfabetizada ainda repita como um papagaio propagandas e preocupações do regime militar, que quarenta anos atrás já eram ridículas.

“O capitalismo funciona” significa que é evidente que os acionistas e dirigentes das empresas que cometem crimes ambientais levam no máximo umas palmadinhas na bunda. Quem paga o grosso é o contribuinte, ou aquele que nem contribuinte é, mas que por algum motivo incerto se vê afogado no oceano de merda gerado pelo lucro alheio. Quem olha para corporações com qualquer simpatia é apenas vítima de propaganda: são todas meras máquinas de fazer dinheiro para acionistas. E o que há de errado com isso? São neutrinhas, não é mesmo? Acionistas são gente, no fundo, como eu e você, que só querem ganhar sua graninha sem saber ou se importar o impacto disso sobre os outros – se eu não quero o mal de ninguém, e ele simplesmente acontece “por acaso”, através de um investimento meu, eu não me sinto responsável. Se dá merda, ora puxa, ninguém queria que desse merda – somos todos vítimas de contratos, seguradoras e contribuições de campanha.

As pessoas que defendem o capitalismo ressaltam a liberdade – a livre iniciativa – e a meritocracia: um sistema capitalista é considerado saudável se tem “mobilidade”, isto é, se há uma possibilidade boa (ou em tendência a aumentar) de um pobre ficar rico (de preferência através do esforço pessoal e do trabalho duro). Porém, em nenhum desses sentidos o capitalismo – enquanto ideologia que prega esses fins – “funciona”. Nisto, ele não funciona. Ele funciona em produzir mais e mais coisas, e levar pessoas a consumir e acreditar que o consumo é o mais importante, e em progressivamente alienar as pessoas perante a cadeia produtiva e seus impactos – nisto ele funciona.

O problema do capitalismo pode ser resumido em três pontos: o primeiro erro é acreditar que se encontra eudaimonia nas coisas, algum tipo de hedonismo grosseiro ou sutil. Depois vem a primazia da economia, a solução nas planilhas bem desenhadas. Enfim, vem o contrato – o contrato como instrumento de eximir responsabilidade.

Quem nunca parou para pensar nessas histórias de “vender a alma para o diabo”, essa forma de idolatria em que se vende a coisa mais crucial que se tem, mas que parece algo abstrato ou ideal demais, por algo bem mais concreto, como o sucesso no mundo material. O bezerro de ouro máximo de nossa cultura é a IPO – esse é o momento em que a empresa “vende a alma para o diabo”. E não, os diabos não são os acionistas, muito menos os dirigentes. O diabo é o algoritmo contratual e os estatutos de pessoalidade corporativa – que são dispositivos para garantir o lucro acima de qualquer outro valor. A pessoa assina para se proteger de qualquer responsabilidade ou consciência – o dinheiro virá quase inexoravelmente, quanto às consequências disso, se lava a mão. Os seres humanos que trabalham para uma pessoa corporativa – que não tem consciência, que é uma série de instruções num contrato – não têm capacidade de usar suas consciências. Eles são uma mera engrenagem da abstração ideológica do capitalismo que, acima de tudo, “funciona”.

É uma ironia que um sistema que venda livre iniciativa, meritocracia e mobilidade – acabe induzindo a perda do valor humano, a desigualdade crescente e vários produtos-prisões e ideias-prisões com o nome e a propaganda da “liberdade”.

Claro, cada um de nós que necessariamente opera em torno disso é também uma engrenagem, enquanto consumidor. A cultura como um todo fala tanto em liberdade porque não a possui. Opera apenas pela tendência inexorável de algoritmos que visam o lucro e passam por cima de tudo e qualquer coisa para esse fim. Que algumas pessoas desinformadas acreditem que isso é bom, que operem assim achando que isso é felicidade, ou no mínimo, a única realidade, é irrelevante e incidental. A máquina regurgita seu metal vil independentemente das vontades humanas.

Criticar o capitalismo significa encarar essa máquina e começar o lento processo de engenharia reversa que nos colocou nessa posição. Talvez haja um calcanhar de Aquiles, outra esperança não há.


publicado em 26 de Novembro de 2015, 00:05
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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