Crise no Egito e minha passagem pelo país

Chegar ao Cairo um dia após um dos maiores atentados terroristas no Egito não é uma experiência com sabor de férias.

Em 31 de dezembro de 2010, uma bomba explodiu em uma igreja em Alexandria, matando mais de 20 pessoas e ferindo mais de 80. A igreja concentrava mais de mil cristãos em celebrações de fim de ano num país onde 90% da população é muçulmana.

Na TV, o presidente pedia união ao povo. Nas ruas, pessoas bradavam bandeiras do país em apoio ao líder que hoje parece querer que seja deposto. O apoio a Hosni Mubarak vinha de muitos jovens egípcios que conheci. Num restaurante no Cairo, jantávamos no dia de Reis em meio a mulheres sem véu – coisa rara na maior cidade muçulmana do mundo. Um amigo me explicava:

"Você vê? Cristãos e muçulmanos sempre viveram bem e em paz aqui no Egito, ao contrário da história que a mídia internacional parece assimilar e, sem perceber, construir."

Nem NY, nem SP, nem Madri. Só o Cairo é 24h, com lojas que fecham às 2h e mesquitas que começam a chamar para a reza às 5h. (Foto do autor)

A história a que se referia era de que a mídia, numa objetividade que não comporta vivência no mundo árabe, construía a ideia de uma guerra secreta entre cristãos e muçulmanos no Egito e no mundo. Apoiados neste imaginário, alguns analistas internacionais estariam defendendo ideias separatistas no país. Um egípcio me explica uma versão para esta crença por parte deles mesmos:

"Separar o Egito seria o desejo de Israel, que quer de volta o Sinai e até as pirâmidas que, segundo os judeus, é obra deles em período de escravidão."

Dentro deste contexto, parecia fazer sentido que Mubarak pedisse união ao povo: poderia querer evitar uma guerra religiosa que desestabilizasse o país. Eu perguntava: “Ele é bom presidente?”. E respondiam: “Fez coisas boas”.

Eu vi um país paupérrimo, caótico, com nível de civilidade muito baixo e uma economia completamente ineficiente por ser quase inteiramente de controle estatatal. Reformas de estradas, estações de trem, museus e outras bem-feitorias levavam décadas para ser concluídas. Gizé, do outro lado do Nilo, em frente ao Cairo, é uma favela mergulhada em lixo que só termina no parque que abriga as 3 pirâmides.

Os outros dois obeliscos do Templo de Karnak estão em Paris e Istambul. (Foto do autor)

Segurança, só mesmo nas ruas do Cairo devido à tradição muçulmana de não roubar. Mas pegar o trem para o sul ou para o norte do Egito me arrepiava a espinha e me fazia suar frio. O detector de metal não funcionava e a revista era “à brasileira”. Eu, com minha cara de ocidental, era ignorado pelos policiais enquanto, em minha cabeça, só vinha em looping a história de um amigo meu contando quando atiraram no trem que ele estava para ver se pegava em turista. Por acaso, era o mesmo trem que eu ia pegar para Luxor.

De fato, Mubarak é um ditador. Mas o Egito nunca conheceu a democracia. O país, que sofreu domínios otomanos, franceses e britânicos até a ascensão de seu primeiro rei, padeceu de troca de líderes por sucessivas nomeações que nunca vieram do povo.

Mohammad Ali, o primeiro rei, era grego, mas serviu o exército no Egito. Foi contra o domínio francês e, por isso, teve apoio dos britânicos e dos turcos para se tornar o pasha. Vendeu a balde o patrimônio histórico do Egito a fim de modernizar o país. Mandou obeliscos pra Londres, Paris, Istambul, múmias para o Museu Britânico, Roma e Nova York, comprou linhas de trem, relógios, carros... Enfim, modernizou tudo temporariamente. Com o golpe que implementou o sistema presidencialista em meados do século passado, o Egito só conheceu reeleições que foram interrompidas por assassinatos e nomeações de outros presidentes pelo Estado.

A encruzilhada em que o país se encontra hoje diz respeito ao mundo inteiro. Mubarak tem o apoio quase silencioso de Israel e dos Estados Unidos. Faz sentido: o Egito, a Jordânia e o Líbano são os únicos países árabes que, após algumas guerras, reconhecem o estado de Israel. Para todos os outros do Oriente Médio, Israel seria uma ocupação indevida.

Países que reconhecem o estado de Israel (Fonte: Wikipedia)

Espanta o Ocidente a ideia de um regime democrático num país onde é comum mulheres andarem somente com os olhos à vista e em que 90% da população é muçulmana. O Egito, a exemplo do Brasil, tem grande apoio do povo no radicalismo e no apego às religiões para se aguentar as agruras do dia a dia. O véu, preto e enclausurante, nunca esteve tão em voga no Egito e – atenção – isso pouco tem a ver com o Islã em si.

Então, seria de se esperar que o estado democrático, em algum momento, levasse à ascensão um líder que correspondesse aos anseios da maioria muçulmana. E não seria espantoso que este líder assumisse uma face mais radical do Islã. Se, por obra do destino, isso ocorre, há a possibilidade de ressuscitar questões que foram preferidas serem deixadas de lado na aproximação com Israel. São questões que podem levar a uma guerra do mundo árabe ao estado judeu, com envolvimento mundial no conflito.

De volta há três semanas do Egito, assustado pelo sufoco que vejo que poderia ter passado, é difícil perceber um lado para o qual eu gostaria que a situação no país se desenrolasse. Não quero ver uma movimentação orquestrada do mundo árabe contra Israel, fruto da ideia de algum representando democraticamente eleito. E também não quero que o Egito padeça emperrado no poder ditatorial de seu principal executivo de estado, seja lá quem for.

Sem comunicação com as pessoas que conheci pela suspensão local da Internet, fica ainda mais difícil visualizar qual o desejo dos egípcios que, naturalmente, queremos ver mais felizes: aqueles que mais se parecem conosco, os ocidentais.

"Tchau, Mubarak..." (Foto do autor)

publicado em 02 de Fevereiro de 2011, 08:00
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Leonardo Moura

Leonardo Moura é o carioca mais paulistano que existe. Formado em jornalismo e administração, trabalha há mais de 10 anos em mídia eletrônica segmentada. É autor do livro "Como Escrever na Rede - Manual de Conteúdo e Redação para Internet" e do blog "O Mundo em 2 Dias".


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