Como mudar o passado: uma visão sobre a Copa União

Passado. Todo mundo tem o seu. Alguns convivem bem com ele. Outros preferem esquecer. Controvérsias, debates infindos, inconclusões. Há quem diga que o passado não muda. Eu discordo. O futebol não me deixa mentir. Prova disso é a Copa União, caso que insiste em alterar o passado. Pelo jeito, eternamente, pois eu não imagino um desfecho nem com a intervenção do Papa.

E essa confusão toda tem lá o seu sentido. Afinal, o passado é o nosso tempo mais precioso. Convenhamos, o presente passa muito rápido. E o futuro é desconhecido. Se queremos nos agarrar em algum momento nessa vida, só nos resta o passado.

O que passou é parte de nós. Antes de entrar em um novo relacionamento, você lembra como começou e terminou o anterior, não é? E nos pré-jogos dos clássicos de futebol não se faz um apanhado do histórico do confronto? O mesmo podemos dizer de uma experiência ruim em um restaurante: depois de uma dessas, fica difícil voltar lá.

O passado deixa marcas

As expectativas que criamos no presente vêm todas do passado. Pode ser por experiência própria ou por observação, mas as decisões que tomamos são baseadas no que já vivemos. O fato é que nosso passado nos constrói.

Por outro lado, o oposto também acontece: nós construímos nosso passado. A seguir, revelarei detalhes sobre essa arte tão passageira que é mudar o próprio passado para que nós consigamos, quem sabe, finalmente lidar com a famigerada Copa União.

Viver

Você pode não lembrar direito, mas, no dia 25 de abril de 1994, você almoçou. Provavelmente, não houve nada de muito especial nesse almoço. As estatísticas comprovam que, provavelmente, você comeu feijão com arroz. Entretanto, dias depois, em 1 de maio do mesmo ano, é difícil o passado não retornar à sua mente. Foi neste dia que morreu Ayrton Senna. Até mesmo para quem ainda não vivia naquela época, essa tragédia deixou marcas no passado.

Mais à frente, meses depois, o Brasil seria campeão do mundo pela quarta vez. Esse tipo de coisa simplesmente não se esquece. E a população de um país inteiro mudou de clima, como se fosse possível compensar uma tragédia.

E é possível mesmo. Afinal, a forma mais comum e óbvia de mudar o passado é viver. Enquanto você vive, acrescenta acontecimentos e pessoas (para alguns, até conhecimento) em sua história. A importância que você confere a cada elemento que participa da sua vida funciona, mais ou menos, como um mosaico onde as peças maiores se destacam e ofuscam as menores. Assim, seu almoço de 25 de abril acaba perdendo espaço para a conquista de um título. Ou a morte de um ídolo.

Quem vive mais tem mais passado. E, consequentemente, um mosaico mais complexo. Não é à toa que conviver com o próprio passado pode se tornar um problema para muita gente, dependendo os eventos que marcaram a vida do cidadão.

Resumindo: viver é ter passado. Quer mudar seu passado? Viva mais.

Revelações

Henry Kissinger é um cara respeitado nos EUA. Judeu, refugiou-se em Nova Iorque aos 15, escapando de uma Alemanha nazista. Serviu o exército norte-americano, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, na mesma Alemanha de que escapou. Kissinger é um d'Os caras de Harvard, com uma tese de conclusão de curso entre as melhores da instituição. Além de tudo isso, ele foi Secretário de Estado de dois presidentes diferentes (em seguida). E até hoje dá conselhos aos muitos que querem ouvi-lo. Um poço de virtudes que não pode de forma alguma ser abalado, certo? Obviamente, não.

De tempos em tempos, o governo americano libera documentos confidenciais. E, dentre os últimos, está uma conversa entre Nixon e Kissinger sobre um pedido de auxílio a judeus soviéticos. Resumindo: queriam que os EUA recebessem judeus da União Soviética em seu país. Alguns políticos americanos acreditavam que esse auxílio poderia surtir efeito positivo nas relações econômicas entre as duas nações. Palavras de Kissinger (um judeu refugiado) a Nixon:

"Encaremos os fatos: a emigração dos judeus da União Soviética não é um objetivo de política externa para os EUA. E, caso eles condenem os judeus soviéticos à câmara de gás, isso não é um problema norte-americano. Pode ser uma preocupação humanitária."

Vejam, é importante perceber que Kissinger não é necessariamente um maluco desalmado. Ele estava sendo objetivo ao tratar de um assunto de Estado. A questão não era de economia, mas sim de humanidade. Entretanto, isso não melhora necessariamente a situação, não é?

Atualmente com 87 anos, um senhor que dava conselhos a Deus e o mundo tem uma manchinha em seu currículo que faz a rapaziada questionar se seus conselhos realmente valem a pena.

Antigas revelações mudam o passado de forma imprevisível. Mudança de passado? Contrate um detetive.

Contexto

Ainda no caso Kissinger, é curioso perceber que havia um contexto histórico em que essa frase foi dita. Esse argumento, inclusive, foi usado pelo próprio Henry em sua defesa: eram outros tempos. Mas os contextos mudam e, conseqüentemente, a história muda.

O que nos leva a Auschwitz. O campo de concentração nazista localizado o sul da Polônia guarda histórias assustadoras até hoje. E, para garantir que essas histórias não sejam esquecidas, Auschwitz, agora um museu, muda.

É, após deixar sua ingrata função para trás, Auschwitz virou museu. Um espaço que tem como função garantir que os terríveis atos cometidos em seu território não mais se repitam. Entretanto, o museu de Auschwitz foi estruturado para se comunicar com pessoas que viveram a guerra. Ou seja, o seu discurso estava inserido no contexto do pós-guerra. Então, por exemplo, falava-se pouco dos nazistas, como se fosse possível forçar um esquecimento dos integrantes do Terceiro Reich. Uma série de detalhes também era omitida, na medida em que o mundo já assimilara muitas das informações da guerra.

Entretanto, agora os tempos são outros. Auschwitz precisa mudar a forma de contar a sua história. Atualmente, o museu fala com pessoas que nunca conviveram com uma guerra mundial. E, cá entre nós, não é a mesma coisa. Por isso, temas antes deixados de lado entram na roda. O conflito de uma mãe entre morrer com o filho ou deixá-lo escapar sem saber o que pode lhe acontecer. A luta para manter a humanidade frente a uma realidade desumanizadora. E por aí vai.

Não dá para negar um certo sadismo da parte dos organizadores do museu, mas a ideia de que o olhar sobre a história precisa mudar para que ela seja assimilada é muito interessante.

O passado é uma forma de entender o presente. Então, preservá-lo é uma questão de responsabilidade. Quer mudar a história? Veja-a com olhos do presente.

Memória

1920, União Soviética. Sr. S. (Solomon Veniaminovich Shereshevsky) é um jornalista que não toma notas. Seu chefe percebe e, entendendo o ato como displicência, reclama. Bem, isso até descobrir que Sr. S. não precisa anotar. Ele simplesmente lembra de tudo. Tudo. Estamos falando de um cara que conseguia memorizar O Inferno, de Dante, sem nem saber falar italiano. Ele era capaz de lembrar de uma entrevista feita 10 anos atrás, palavra por palavra. E lembrar qual era a marca do seu microfone, se o entrevistado era destro ou canhoto e mesmo a cor da sua camisa.

O chefe, então, vai a um médico para verificar o que há de errado (ou certo) com o rapaz. Dessa visita, surge um livro sobre Sr. S.

Legal lembrar de tudo, né? Dá pra evitar algumas brigas com a namorada. Mas o que parece uma grande virtude é, na verdade, uma espécie de maldição. Afinal, se o cara não esquece de nada, tudo com que ele se relaciona ativa sua memória. Então, se ele vê um cãozinho na rua, ele lembra de todos os outros cães que já viu, dos lugares onde eles estavam, das suas cores, dos sons que eles faziam etc. etc. Loucura, não?

Curioso perceber, mas a gente consegue se relacionar com o mundo à medida que "esquecemos" do restante dele. O Sr. S., coitado, acabou meio louquinho, fazendo shows de memória pela União Soviética, com atos como lembrar de números ditos aleatoriamente pela platéia durante 10 minutos seguidos. O cara decorava tudo e dizia na ordem.

A maioria de nós não é como o Sr. S. Ainda bem. Mas não é por isso que a memória deixa de ser útil. Inclusive, muitas vezes usamos recursos para ajudá-la. Tiramos fotos, fazemos listas, escrevemos em diários, filmamos. Tudo isso para registrar momentos que não queremos esquecer.

Se você não é como o Sr. S. e quer garantir que sua memória não vai se desconstruir a ponto de te trair, registre o presente e ajude a memória.

Paixão

De todas as formas de construir o passado, não tem jeito, a paixão é a que mais funciona. Infelizmente, ela não é passível de controle.

Nós lembramos e entendemos o nosso passado na medida em que ele nos é representativo. Morte de ídolo, derrota do time na final, primeiro beijo, primeiro dia depois da saída da casa dos pais... A Copa União.

Nós não lembramos apenas do que queremos, mas do que nos ajuda a viver – ou, em outras palavras, do que não podemos viver sem. Neste caso, não há conselho que se possa dar. Não tem detetive particular, filme, diário, contexto ou vida a se viver para esquecer.

Fonte: The Big Picture (Boston.com)

Sendo assim, não interessa quem realmente ganhou a Copa União. Não importa o que a CBF dirá, o que a FIFA, o Papa ou sua mãe irão afirmar. Para um torcedor, viver sem um título que "é seu" não faz sentido. E, a partir do momento em que ele o ganhou, ninguém tasca.

Vivemos uma briga burocrática para tentar mudar os registros da história. E, como pudemos ver, isso é até possível. Mas não para os apaixonados. Esses ninguém consegue mudar. Não há memória, contexto, revelações ou vida que faça um apaixonado mudar aquele passado que é só dele. E, sinceramente, quem somos nós para esperar uma mudança dessas?

Que os clubes e CBFs da vida continuem brigando. Às vezes, parece que é apenas para isso que eles existem. As torcedores vão se apoiar nos fatos (seja lá quais forem, verdadeiros ou não) resultantes do debate para sustentar suas crenças e nada mais.

O ano de 1987 não acaba. Mas os outros anos também não acabarão, afinal, até pelo ano mais feioso, sempre vai ter alguém apaixonado.

União sempre foi assim. Tem que ter paixão.


publicado em 20 de Março de 2011, 05:01
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Rodrigo Borges

Rodrigo Borges não costuma falar na terceira pessoa quando se refere a ele mesmo. Tenho um Twitter meio paradão, mas estou sempre pela internet. Inclusive, sou editor do OsGeraldinos, um portal bacana sobre esportes (passa lá). Entendo o futebol como uma forma de linguagem e acabo misturando outros assuntos com ele. E acaba dando nessas coisas aí.


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