Ciúme: atestado de egoísmo

Para Lais Loreto, que me provocou
a escrever este artigo, e Mariana Terin,
que me ajudou a construir esta visão

O ciúme é uma azia que arde na alma.

Ciúme: atestado de egoísmo
Paradoxo: arde a alma, mas há o frio na barriga

É aquela sensação de perigo iminente, de ameaça ao que lhe "pertence". Li aqui uma definição bem interessante provida pelos psicólogos israelenses Ayala Pines e Elliot Aronson:

“O ciúme é o complexo de pensamentos, sentimentos e ações que são provocados por ameaças à existência ou à qualidade do relacionamento que são gerados pela percepção da atração, real ou potencial, entre o parceiro e um rival (imaginário ou real).”

Certa vez, uma amiga me perguntou o que era ciúme. Respondi algo que deu origem a este artigo:

"O ciúme é o mesmo sentimento de alguém que come o último pedaço de pizza que você tava guardando pra depois. Só que mais elevado. "

Em trocados, é o medo que lhe tomem o que supostamente é seu. Ou melhor, é o receio de que o que supostamente é seu queira ser roubado.

Tomemos um cenário comum: o celular dela toca. É uma mensagem. Ela lê o SMS e esboça um sorriso. Você fica com ciúmes pensando que pode ser um outro cara. E talvez seja. Talvez ela queira mesmo sair com outro homem e gozar. Talvez ela não tenha mais amor ou tesão por você, e o relacionamento esteja no fim.

Sentir ciúmes vai fazer com que o suposto tesão dela pelo outro acabe? Vai fazer com que "ela entre na linha" e não mais fale com o sujeito? E se fizer, você não está sendo demasiadamente egoísta ao privar uma mulher – que hoje é sua namorada, mas que amanhã pode ser apenas lembrança – de algo que ela acredita que a deixará mais feliz?

Perceba que o ciúme está basicamente ligado a duas coisas: 1) o sentimento de posse, e 2) a privação de desejos alheios. E as duas coisas nascem do seu orgulho. O artigo "O seu namorado abusivo" tem um trecho que reflete bem este orgulho e a maneira como ele age:

"Ele tomaria um tiro por você instintivamente, mas se outro cara te disser, despretensiosamente, que também gosta de pop-art ou elogiar seu cabelo, então pelos próximos meses você será sutilmente persuadida de que pop-art é uma fraude e o quão mais bonita você ficaria de cabelo curto."

A verdade, por mais que soe clichê, é uma só: você não é dono da sua namorada. Ela não é sua posse. Ela não é de ninguém. Ela é um ser humano autônomo, singular, com desejos, que anseia sobretudo a própria felicidade. E não há nada de errado nisso.

Ciúme: atestado de egoísmo

Se você sente ciúmes da sua mulher, a culpa é sua, não dela.

E não, ciúme não é "prova de amor". É apenas atestado de egoísmo.

E não, ciúme não é bom se for "só um pouquinho". É simplesmente corrosivo.

É possível abolir o ciúme?

Sendo a origem do ciúme o sentimento de posse (inclusive a posse de qualquer coisa que a deixe feliz), nada mais óbvio que implodir esta sensação e adotar para si o desapego, o pensamento de que, se você ama alguém, você quer ver este alguém feliz – ainda que não seja ao seu lado.

"Se eu namoro você, quero te ver feliz. Se você disser que ficará feliz dormindo com um carinha avulso que achou sexy e tal, como eu posso dizer não? Eu consigo saber e compactuar com o desejo da minha mulher de transar com outro, mas fico mal se ela troca mensagens de celular secretamente com outro cara."

Acredito que o conceito de traição deve ser revisto, também. Afinal, nesta visão eu-te-amo-e-te-quero-feliz-mesmo-que-sem-mim, a traição apenas ocorre quando não há sinceridade. Quando  comunicação falha. Quando uma das partes não consegue verbalizar ou demonstrar o que deseja.

Às vezes, não trair alguém é trair a si mesmo.

Eu tive uma namorada na época da faculdade e, numa das conversas, fui bastante claro: disse que se ela se apaixonasse por alguém e quisesse transar com outro cara, que apenas me avisasse para que pudéssemos fazer disso algo legal para todo mundo. Ela achou aquilo absurdo; eu achei aquilo a maior prova de amor.

Não há bom senso maior que se devotar à felicidade daquela(e) que ama. Seja esta felicidade qual for.

Pê-ésse musical:escrevi este artigo ouvindo Blubell. Não tem nada a ver com o tema do artigo, mas recomendo a audição. Seguem duas músicas bacanas do último álbum, Eu sou do tempo em que a gente se telefonava. De nada.


publicado em 11 de Junho de 2012, 21:01
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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