Homem sem carro, ciclista: ser estranho e mal-sucedido?

Vida de ciclista em São Paulo é dura.

A cultura da truculência brasileira é exponencial no trânsito. Isolados em seus habitats particulares, motoristas enclausurados em seus veículos entendem seu espaço sobre rodas como um exercício de individualidade na modo brasileiro de ser indivíduo: sua liberdade, aqui, não termina onde começa a do outro, ainda mais se o outro não goza dos mesmos elementos simbólicos que os seus. Ou seja: se seu veículo é menor, saia da frente porque eu estou passando.

Há dois meses, iniciei um curso na Casa do Saber, no bairro do Itaim. Diz o site da escola que ali ainda é “Jardins”. Eu, que realmente levo minha vida de interior nos Jardins, quando tenho que me deslocar para a Casa do Saber, no Itaim, vou de bicicleta. Morrendo de medo, como sempre.

Diz um amigo que usa mais a bike do que eu que o respeito ao ciclista vem aumentando. Eu ainda desconfio e acabei de instalar um retrovisor no guidão para prever melhor a chegada dos motoristas afoitos. Dar a seta antes das conversões, no Brasil, tem cara de ser facultativo. Falar ao celular ao volante é mais usual que tirar meleca – talvez seja isso que impeça o motorista de dar a seta. E jogar o carro pra cima do pedestre é um exercício sádico habitual.

Vivemos na Índia

Bicicletas convivendo com carros: não, não é isso que vou dizer. | Créditos: Fran Simó.

A explicação é simples e é social. Na nossa inversão de valores, quem está na rua, considerada suja, largada, como assim vemos o espaço público, praticamente atrapalha o ir e vir de quem está dentro dos carros.

Seria melhor que esse indivíduo andante nem existisse. Afinal, ele é de uma classe social diferente da sua, um outro tipo de vida, imundo, ignorante, feio e com o qual sequer podemos imaginar a cópula, o relacionamento, a amizade e o casamento. Muito menos o convívio urbano. O Brasil é a Índia mascarada: diferentes classes sociais são diferentes castas e merecem ser ignoradas, já que não podem ser liquidadas.

Com as ciclistas, a situação é essa. São os de fora, estranhos e mal-sucedidos, que atrapalham nossas vidas já caóticas no trânsito.

A mídia de massa, que tem o poder de mudar a construção simbólica da nossa sociedade videotizada, ainda não expõe direito a causa sobre duas rodas não motorizadas. Mas diz esse mesmo amigo meu que a situação vem melhorando. Pelos noticiários ou programas informativos, a mesma mídia de massa vem convencendo motoristas a entender que quem está de bike é gente como eles.

O efeito nas ruas é lento, já que lei de trânsito é mais esquecível que regra de matemática: poucos motoristas sabem que as bicicletas são veículos leves que podem e devem ocupar os espaços públicos e as vidas de trânsito e, para ultrapassar um ciclista, a distância obrigatória lateral é de 1,5m e a velocidade deve ser reduzida. Está previsto na Lei e a infração custa multa e pontos na carteira.

Lugar de bicicleta não é necessariamente nas inexistentes ciclovias. É claro que elas são ótimas para as vias de alta velocidade. Mas nas vias menores, já que não há força política para implementar as baratíssimas ciclofaixas (aquela pintura na lateral direita das ruas para reservá-las às bikes), nos resta disputar o espaço com os veículos motorizados.

Paris é um bom exemplo: já imaginou termos trocentas bicicletas pela região da Avenida Paulista, por exemplo?

O que a Casa do Saber não sabe

O respeito não carece de acontecer só nas ruas. Chegando no primeiro dia de aula na Casa do Saber, uma cena tipicamente paulistana adornava a porta. Um serviço de valet, que deve cobrar um preço louco de no mínimo R$ 15,00 por duas horas de abrigo e manobras acrobáticas com os carros, estava a postos para atender os motoristas que chegavam, naturalmente, sozinhos sobre quatro rodas.

Cheguei eu de bicicleta e perguntei onde poderia estacioná-la. Aponta o porteiro para o pátio da Livraria da Vila, que fica na entrada da escola, como se dissesse “Deixa por aí”.

Recusei a oferta, enfiei a bicicleta no elevador e fiz questão de entrar na secretaria da escola.

– Onde deixo a bicicleta?
– Lá embaixo.
– Lá não tem bicicletário. Não é a Casa do Saber? Deveria ter.
– Uma antendente ri. Outra faz cara feia.
– Então deixa aí, ó...
– Ótimo, vou deixar aqui.

Enfiei dentro de um armário ao lado do banheiro.

Mau humor

É fácil entender a dura vida dos motoristas em São Paulo. Pagam muito por seus carros, muitos impostos, seguros, estacionamentos caríssimos. Perdem horas no trânsito. Se estressam. Descontam a frustração num alguém superior que ocupa de forma diferente o espaço urbano (seria compreensível se não fosse absolutamente injustificável). Diariamente, enfrentam médias de horas insanas para qualquer cidadão acostumado à qualidade de vida e o bem estar social.

Link Vimeo

O paulistano nega o transporte coletivo. A desculpa é a de sempre: “É de má qualidade”. Compreensível se muitos de nós tivéssemos a vida dura das classes menos favorecidas da nossa sociedade, que perdem horas no trânsito para chegar ao trabalho. Nós nos poupamos do contato com esse tipo de gente preferindo percorrer distâncias de até 10km trancados individualmente em nossos carros, construindo a maior masela da metrópole do país: o trânsito engessado e violento. Insistentemente colegas com quem converso garantem que, ainda assim, compensa usar o automóvel individual.

"Tá demais, né, gente? Um dia a cidade para."

Vivi nove anos no Rio e vivo há pouco mais de cinco em São Paulo. Toda cidade tem seus assuntos de cotidiano, aquele papo furado que preenche um vazio na hora de não sabermos falar sobre qualquer outra coisa. Pintam sempre naqueles minutos que antecedem reuniões de trabalho. Reparem. No Rio, o papo é violência urbana. Todo carioca que se preze já foi assaltado ou conhece alguém que foi assaltado ou já presenciou alguma cena de violência urbana. Em São Paulo, o papinho é o que se espera da cidade:

“Vai parar. Esse trânsito não está dando.”

O "vai parar", para quem vê de fora, é tão palpável quanto a escalada de violência urbana à qual os cariocas assistem habitualmente em suas vidas de maneira desmedida, como se aquilo não os prejudicasse de fato. Em São Paulo, a cidade já parou. Quem acha normal tirar o relógio do pulso e esconder o iPod para não ser assaltado em ônibus no Rio tende a achar muito comum perder 2 horas para percorrer 20km no trajeto paulistano de volta a casa depois de uma sexta-feira de trabalho.

Link Vimeo | O carro apareceu na história da humanidade para aumentar nossa velocidade de transporte, certo? Mas nossa mobilidade em São Paulo é de 12km/h, mais lenta do que se andássemos em uma mula (11:54 no vídeo).

Se você é um desses, reveja urgentemente suas referências de qualidade de vida urbana. Respeitar o ciclista é um bom começo. Você não precisa ser um, mas veja como de fato ele contribui para a qualidade de vida de sua cidade.

Ignorar o transporte urbano ou a vida do pedestre e de quem usa veículos leves é piorar como um todo a sua própria qualidade de vida. Uma das tragédias culturais da nossa sociedade é esperar que um alguém salve a cidade ou o país, livrando a responsabilidade diária de nós mesmos. Se isso não acontece – e duvido que vá acontecer, apesar de insistente onipotência demagógica de nossos principais líderes –, parta para a ação simples. Instalar um bicicletário em seu negócio e entender que o ciclista é sim um carro a menos nas ruas vai tornar sua vida mais mansa.

Videotização

Como a reflexão é baixa, espero a mídia de massa contribuir para a mudança no imaginário social. Mostrar um ciclista como um ser que tem hábitos saudáveis e que só usa a bike para competições faz com que os que pouco me conhecem me vejam como algo que oscila entre o atleta e a criança. Afinal, bicicleta é pra quem gosta de se exercitar ou não tem dinheiro para comprar um carro.

Qual imagem surge à mente quando você pensa nos ciclistas? | Crédito: Peninqué.

A esperança aqui é alta. Há doze anos, na novela Torre de Babel, de Silvio de Abreu, o público preferiu aniquilar o casal de lésbicas na explosão de um shopping center por não concordar em vê-las felizes diariamente em suas telas. Hoje, duvido que isso fosse necessário, já que o homossexual já está mais desmitificado na cabeça do povo. Com a imagem dos ciclistas, pode acontecer o mesmo.

De seres dotados de grande físico e disposição, ou de pobres coitados que utilizam veículos leves para trabalhar, a soma de noticiários à dramaturgia televisiva vai contribuir para transformar nossa imagem em indivíduos a fim de simplesmente ir e vir no trajeto urbano.


publicado em 29 de Setembro de 2010, 06:19
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Leonardo Moura

Leonardo Moura é o carioca mais paulistano que existe. Formado em jornalismo e administração, trabalha há mais de 10 anos em mídia eletrônica segmentada. É autor do livro "Como Escrever na Rede - Manual de Conteúdo e Redação para Internet" e do blog "O Mundo em 2 Dias".


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