Carta aberta às pessoas humoristas do Brasil

Pessoas humoristas do Brasil,

Essa carta é minha humilde tentativa de fazer vocês colocarem a mão na consciência.

Pra começar, me apresento.

Sou, ou fui, um de vocês. Durante grande parte da década de noventa, escrevi para a Revista Mad in Brazil, editada pelo imortal Ota, sob o pseudônimo Xandelon. Cheguei a ser subeditor uma época, publicava quase todo número e escrevi dezenas de matérias de capa sob encomenda. Com esse dinheiro, pagava minhas contas e vivia disso.

Essa matéria de capa, sobre a Feiticeira, é minha. Será que alguém ainda lembra dela?
Essa matéria de capa, sobre a Feiticeira, é minha. Será que alguém ainda lembra dela?

Sei como é um trabalho duro sentar na redação e espremer a cabeça até sair uma piada. Sei como é frustrante achar que a piada está ótima, testá-la com o resto da equipe… e ninguém rir.

Então, aos trancos e barrancos, sem nunca ter sido lá brilhante, posso dizer que já fui sim humorista profissional.

A dura vida de humoristas profissionais

Em teoria, o humor é simples: você cria uma expectativa, e depois a subverte.

Para o humor poder existir, são necessários uma série de pressupostos culturais coletivos, compartilhados por humorista e público que, convenhamos, muitas vezes são sim outrofóbicos, machistas, homofóbicos, racistas.

A piada "sabe como afogar uma loira? coloca um espelho no fundo na piscina!" só funciona porque tanto humorista quanto plateia "sabem" que loiras são fúteis, vaidosas e burras. Se não compartilhassem esse "conhecimento", não é nem que a piada não seria engraçada: ela faria tão pouco sentido que não seria nem mesmo coerente enquanto narrativa.

Naturalmente, por esse mesmo motivo, o humor é sempre local: para pessoas de outras culturas, com outros pressupostos culturais compartilhados, a historinha também não faria sentido – pois não teriam a chave pra decodificar a piada, ou seja, que loiras "são burras, fúteis e vaidosas". (Não são.)

Se é pra sacanear alguém, sacaneie os poderosos, e não os subalternos.
Se é pra sacanear alguém, sacaneie os poderosos, e não os marginalizados.

Outro dia, a revista norte-americana Wired fez uma matéria de capa sobre humor. Pouca gente sabe, mas existem muitos estudos acadêmicos sérios (sic) sobre o humor, muita gente brilhante tentando entender: porque o engraçado é engraçado?

Enfim, uma das últimas teorias, citadas na Wired, é que o humor viria de uma violação da ordem estabelecida, seja através de dignidade pessoal (tropeçar na casca de banana, deformidades físicas), normas linguísticas (gagueira, língua presa, sotaques), normas sociais (comportamentos inusitados), e até mesmo normas morais (bestialidade, etc), mas que ao mesmo tempo não representasse uma ameaça ao público ou à sua visão de mundo.

Essa última parte é talvez a mais importante: a violação não pode ameaçar ou contradizer a visão de mundo do público, senão ela nem será compreensível.

Usando o mesmo exemplo acima, até dá pra fazer uma piada sem loiras, mas se a sua piada incluir uma loira, ela vai ter que ser burra, mesmo contra sua vontade, pois assim que mencionar "loira" o público já vai imaginá-la "burra", mesmo se você acrescentar que é uma loira física nuclear ganhadora do Nobel.

(Nesse último caso, o público certamente pensaria que a piada era justamente sobre como a loira burra conseguiu virar física nuclear ganhadora do Nobel.)

Mas não dá pra desfazer a associação loira + burra.

Dois em uma: piada de loira portuguesa. E mexendo os dedinhos dos pés.
Dois em um: piada de loira E portuguesa. E mexendo os dedinhos dos pés.

Por outro lado, e é por isso que estou escrevendo essa carta, se é impossível você humorista acabar por conta própria com o estereótipo da loira burra, é possível não reforçá-lo:

Basta não fazer piadas de loira burra.

Algumas das pessoas mais inteligentes que já conheci eram lindas loiras que enfrentavam dificuldades constantes de serem levadas a sério no ambiente de trabalho. Apesar disso, e sem desmerecer os problemas que essas pessoas enfrentam, de fato, no cômputo geral dos preconceitos assassinos da nossa sociedade, o estereótipo da loira burra é quase inofensivo. Quase.

Mas fazer rir utilizando esses estereótipos (a loira burra, a pessoa homossexual afetada, etc) é muito fácil. E não estou dizendo que vocês não podem não. O país é livre e temos liberdade de expressão justamente para isso.

Mas dá pra fazer diferente, eu peço.

Na verdade, eu desafio.

O machismo mata

Dez mulheres são assassinadas por dia no Brasil, colocando-o no 12º lugar no ranking mundial de homicídios contra a mulher. Uma em cada cinco mulheres já sofreu violência de parte de um homem, em 80% dos casos o seu próprio parceiro. Em 2011, o ABC paulista teve um estupro (reportado!) por dia. Na cidade de São Paulo, uma mulher é agredida a cada sete minutos.

As mulheres são mortas em tão grandes números, e por seus próprios homens, porque existe uma cultura machista no Brasil, onde as mulheres são vistas como tendo menos valor, onde as mulheres são rotuladas ou como santas ou putas, onde uma mulher viver abertamente sua sexualidade é considerado ofensivo ou repreensível, onde a sexualidade de uma mulher tem impacto direto sobre a honra de seu companheiro.

Faça pouco dos poderosos que podem se defender.
Faça pouco dos poderosos que podem se defender.

Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura machista, que objetificam a mulher, que estigmatizam seu comportamento sexual, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.

Você é cúmplice.

(Não deixe de ler, aqui no PapodeHomem, meu texto: Feminismo para homens, um curso rápido.)

O racismo mata

Entre 2002 e 2007, o número de homicídios cujas vítimas eram jovens homens negros aumentou 49%. De cada 100 mil habitantes, morrem por homicídio 30,3 pessoas brancas e 68,5 pessoas negras. A probabilidade de ser vítima de homicídio é 12 vezes maior para adolescentes homens e, dentro desse grupo, quatro vezes maior para jovens homens negros. De cada três jovens assassinados, dois são negros. A população negra teve 73% de vítimas de homicídio a mais do que a população branca.

As pessoas negras são mortas em proporções tão altas, em comparação ao restante da população, porque existe uma cultura racista no Brasil, onde as pessoas negras são vistas como tendo menos valor, onde são hiperssexualizadas como "negões bestiais" ou "mulatas rebolantes", onde são sempre retratadas na mídia como preguiçosas ou malandras, atletas ou faxineiras, mas nunca (ou raramente) a física quântica ou a médica, a enxadrista ou o galã pegador.

Rárárá! Esse Danilo é ótimo! Só que não.
Rárárá! Esse Danilo é ótimo! Só que não.

Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura racista, que denigrem as pessoas negras (inclusive usar o verbo "denegrir"), que comparam as pessoas negras a animais, que classificam o tipo de cabelo característico das pessoas negras de "ruim", que associam as pessoas negras à pobreza, ao crime, à ignorância e a tudo o que há de mais baixo na escala social, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.

Você é cúmplice.

A homofobia mata

Em 2010, foram mortas 260 pessoas homossexuais no Brasil, 62 a mais que em 2009 (198), um aumento de 113% desde 2007 (122). Nos EUA, com 100 milhões a mais de habitantes, foram mortas 14. Uma pessoa homossexual brasileira tem 785% mais chances de morrer vítima de violência que uma norte-americana. As coisas parecem estar piorando: só nos primeiros dois meses de 2012, foram 80 assassinatos confirmados. Mantido esse padrão, teremos 500 pessoas homossexuais assassinadas até o final de 2012. Nenhum país do mundo mata tantas pessoas homossexuais quanto o Brasil.

As pessoas homossexuais são mortas em proporções tão altas, em comparação ao restante da população, porque existe uma cultura homofóbica no Brasil, onde as pessoas homossexuais são vistas como tendo menos valor; onde são hiperssexualizadas como máquinas eróticas sempre prontas para o sexo casual; onde são sempre retratadas na mídia como ridículas, efeminadas, exageradas, folclóricas; onde a tentativa de ensinar às crianças que homossexualidade é normal é rotulada de "kit gay"; onde a tentativa de dar direitos iguais às pessoas homossexuais é rotulada de "ditadura gay"; onde a pregação de que as pessoas homossexuais são pecadoras que vão pro inferno é protegida pela "liberdade de expressão".

Se você faz piadas que confirmam os lugares-comuns dessa cultura homofóbica, que estigmatizam e ridicularizam as pessoas homossexuais, que utilizam a homossexualidade como xingamento como se ser homossexual fosse intrinsecamente ruim, que associam a pessoa homossexual ao pecado e à devassidão, ao ridículo e ao nojento, então você possibilita e reforça essa cultura assassina.

Você é cúmplice.

(Não deixe de ler, aqui no PapodeHomem, esse depoimento: “Queria ser hétero, mas não consigo”, editado e comentado por mim.)

Não reclame da "patrulha"

"Patrulha" são militares armados que podem te matar se você os desobedecer.

Torcer o nariz para as piadas racistas, homofóbicas ou machistas não é "patrulha": é o público exercendo pacificamente sua liberdade de expressão de considerar babaca uma pessoa que faça piadas racistas, homofóbicas ou machistas.

Esses pobres humoristas "perseguidos" que reclamam da "patrulha politicamente correta" não estão defendendo a liberdade de expressão: liberdade de expressão de verdade é comediantes poderem fazer piada sobre mulheres estupradas e nós podermos fazer críticas severas a isso.

Na verdade, a liberdade que querem essas pessoas paladinas do "politicamente incorreto" é a liberdade de falar os maiores absurdos sem nunca sofrerem críticas.

Aí é fácil, né? 

Nunca vi ninguém não-babaca se dizendo "politicamente incorreto".
Nunca vi ninguém não-babaca se dizendo "politicamente incorreto".
[E]sse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram racistas, gente. Pode ter certeza que seus tataravôs já comparavam negros com macacos. Aposto como seus tataravôs já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia teve em ser estuprada. Vocês não são moderninhos, não são ousados, não são criativos. Vocês estão apenas seguindo uma tradição.

Falar besteira, qualquer criança fala.

Pessoa adulta é quem sabe que falar significa se abrir para a possibilidade de ouvir a resposta. Pessoa adulta é quem entende que ela tem a mesma liberdade de falar que as outras pessoas têm de criticá-la.

[O humor] não tem que ter limites. O que a gente tem que ter também é uma crítica ilimitada. O humor tem que ser solto como qualquer linguagem humana tem que ser solta e livre, o que a gente tem é que ter o direito de exercer o poder da crítica sobre isso permanentemente. Então você dizer que uma piada é racista, ou sexista, e argumentar nessa direção, não é censurá-la, é exercer seu direito de crítica.
Tudo que hoje falam do casamento gay era o que falavam do casamento interracial.
Tudo que hoje falam do casamento gay era o que falavam do casamento interracial.

Pra encerrar, amigas humoristas, não esqueçam nunca qual é a função social mais importante da liberdade de expressão:

Sem ela, como saberíamos quem são as pessoas outrofóbicas?

Façam pouco das pessoas que agridem, não das pessoas que são agredidas

Não existe piada inofensiva: se alguém gargalhou é porque alguém se deu mal.

A questão é: quem se dá mal nessa piada?

Se é a vítima, a pessoa marginalizada, a minoria, a mulher, a pessoa gay, a pessoa negra, etc, então essa piada é parte do problema. Ela confirma, apoia, sustenta a ideologia dominante. Ela está a serviço da outrofobia.

Quando uma pessoa gay é agredida com uma lâmpada na Av. Paulista, a equipe de criação da Praça é Nossa não pode levantar as mãos e se declarar inocentes. E nem quem assiste e ri.

O "santo" Monteiro Lobato era muito racista - e a Emília também.
O "santo" Monteiro Lobato era muito racista - e a Emília também.

Mas não é necessário que comediantes larguem suas carreiras e vão vender seguros. Por que não fazer piadas de gays… onde são as pessoas homofóbicas que se dão mal? Piadas de estupro… onde quem se dá mal são os estupradores?

As pessoas que trabalham com humor são livres para fazer piadas sobre o que quiserem. Mas também são pessoas cidadãs dotadas de consciência. Os números da violência contra a mulher são impressionantes. Somos o país que mais mata gays. Jovens negros são vítimas da maioria desproporcional dos homicídios.

A escolha é nossa, tanto humoristas quanto consumidores e repassadores de humor: queremos ser parte da solução ou parte do problema? Queremos estar do lado de quem mata ou estender a mão à quem está morrendo?

A discussão não é abstrata. Não estamos falando sobre princípios filosóficos. Tem gente morrendo AGORA.

O humor ajuda a perpetuar o racismo.
O humor ajuda a perpetuar o racismo. Ou a denunciá-lo. A escolha é de vocês.

De fato, é muito mais difícil fazer humor sem usar esses estereótipos outrofóbicos que confirmam e fortalecem as culturas assassinas do nosso país: a homofobia, o machismo, o racismo, a transfobia.

Será que vocês conseguem? Será que conseguem, ao mesmo tempo, fazer rir e não ser cúmplice dos assassinatos de mulheres, pessoas negras, pessoas trans*?

Sei que não é fácil. Se fosse fácil, eu não estaria pedindo. Se fosse fácil, eu não estaria propondo o desafio.

Mas é tão necessário. É tristemente necessário.

Porque os humoristas alemães que faziam piadas de judeu em 1935 não são inocentes de Auschwitz não.

Fazer rir é relativamente fácil. Difícil é fazer rir sem ser babaca.

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Outrofobia: Textos Militantes

Esse texto faz parte do meu livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

Se você gostou do que eu escrevo, então, dá uma olhada no livro: custa só trinta reais e deve ter mais coisa que você vai gostar também.

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Esse texto foi reescrito e republicado em janeiro de 2014, para melhorar a argumentação, excluir trechos fracos e tornar a linguagem menos sexista. Confira aqui minhas dicas pessoais sobre como escrever de forma menos sexista.


publicado em 05 de Dezembro de 2012, 22:11
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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