Ayrton Senna foi definitivamente um dos maiores corredores da história da Fórmula 1. Raçudo, impetuoso, com instintos e reflexos precisos além do ponderavelmente humano. Tirava de carros inferiores uma potência inimaginável. É considerado o maior ídolo do esporte brasileiro depois de Pelé.

E é na passagem “definitivamente” que se inicia o problema entre o mito Ayrton Senna e uma pessoa de carne e osso que sacudiu e levantou muita poeira nas pistas. Senna é lembrado como o melhor piloto de todos os tempos. A Globo já o tratava dessa forma, em seus últimos anos. Há algo curioso nisso: entre 1981 e 1991, 6 dos 10 campeonatos mundiais foram conquistados por brasileiros – três por Senna, três por Piquet. Basicamente houve o (então) tricampeonato de Prost e um título de Niki Lauda nos entreatos.

Senna é o único? Por que não Piquet?

Toda unanimidade é burra, não?

Há uma explicação simples. Senna, que foi para a Fórmula 1 quando Piquet já era bicampeão, soube se entrosar com os jornalistas esportivos da maior formadora de opinião do Brasil, a Rede Globo (com a licença para se chamar alguém da Globo de “jornalista esportivo”). Piquet, o oposto de Senna em tudo (Piquet era carioca, Senna era paulista; Piquet era cerebral, Senna impulsivo), era famoso pelo mau humor com que tratava a ignorância dos entrevistadores da Globo, sem nenhum apelo e nenhuma mensagem bonitinha para o público.

Piquet não apenas ficou marcado como alguém “menor” do que Senna. Piquet não é lembrado sequer como um “segundo lugar” na Fórmula 1 na década de 80.

É uma injustiça muito grande. Piquet era mecânico do próprio carro. Cursou 3 anos de Engenharia Mecânica. Criou de cunho próprio técnicas que são usadas até hoje na F1, como aquecer os pneus antes da corrida. Senna viveu às turras com os engenheiros, e sua petulância como “promessa” o tornou persona non grata por onde quer que passasse.

Piquet detestava a demagogia de Senna. Sua mania de “defender o Brasil”, num patriotismo bem xarope, dosado bem ao gosto dos telespectadores da Globo.

Os fãs de Senna até hoje têm dessas. Não seria preciso. Piquet também é brasileiro, e fez a melhor ultrapassagem da história da Fórmula 1, em 1986, estreando o circuito da Hungria. Tentou passar seu adversário, sem sucesso. Na segunda tentativa, chega aos limites das leis da Física, pega o vácuo do carro em um retão. O piloto da frente não se preocupou em fechá-lo, pois estava com o lado “limpo” da pista, que os pilotos usam quando estão sozinhos. Dessa vez, Piquet o ultrapassa pelo lado de fora de uma curva fechada a mais de 300 km/h, e para não ser ultrapassado de novo, desse mesmo lado, faz o carro andar com as quatro rodas de lado por alguns metros para impedir a passagem. Ainda arruma tempo de mandar tchauzinho – talvez com apenas um dedo, mas enfim, um tchauzinho. O seu adversário se chamava Ayrton Senna.

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A Fórmula 1 é um esporte onde detalhes microscópicos fazem a mais completa diferença. O ambiente de trabalho, portanto, é um dos mais tensos do mundo. Um centésimo desperdiçado nos boxes pode arrancar o título, a glória e a fama de um piloto inocente. Assim, nada protege os pilotos da tensão de cada um. Nem ser companheiro de equipe, como foi Prost, nem ser do mesmo país, como foi Piquet.

Senna entrou no esporte no fim de uma era perigosíssima. Sendo recreação da elite da elite (o carro de F1 mais chumbreca tem um motor melhor do que 20 Alfa Romeo’s), a petulância de pilotos de famílias nobres da Europa era pública. Senna conseguiu se destacar mesmo nesse quesito.

Em 1973, o piloto francês François Cévert morria no acidente mais violento da Fórmula 1: após derrapar numa chicane, vai de encontro a um guard rail (as lâminas de “proteção” nos cantos da pista), ricocheteia e passa por baixo do guard rail do

lado oposto. É degolado e seu carro (junto com seu corpo), partido ao meio. Carlos Reutemann, ao ser informado, reagiu com uma pergunta:

“Você sabe que relação de marchas ele estava usando?”

Senna, desde sempre considerado uma promessa, afugentou um dos sócios da McLaren exigindo que o carro tivesse condições de ser o campeão em 86. Nesse ambiente de poucos amigos, ainda assim nunca se vira tamanha grosseria vindo de um piloto.

Um acordo interno entre os pilotos da McLaren (Senna então dava até entrevistas junto a seu companheiro Prost) definiu que nenhum dos pilotos iria ultrapassar o outro na primeira volta, em que todos os carros ainda estão próximos e o risco de acidentes é altíssimo (como os acidentes que vitimaram Ronnie Peterson e, pouco tempo antes, Riccardo Paletti). Senna ignorou o acordo, ultrapassou Prost e liderou a corrida até o fim. Uma atitude anti-ética e tão pouco civilizada que se estranha não ter sido comentada à época, como foram comentados recentemente o acidente com Nelsinho Piquet. Foi o começo de um desgaste tão grande entre ambos que Prost, quando foi para a Williams, exigiu apenas uma cláusula de contrato: não ser novamente companheiro de Senna.

A rivalidade entre ambos chegou perto de gerar tragédias diversas vezes. Nunca dois pilotos se envolveram tanto em acidentes como Prost e Senna. O ápice foi no Grande Prêmio do Japão de 1990, em Suzuka. Irritado com uma decisão da FIA que não favorecia a posição do seu carro na largada, Senna ignora a movimentação de Piquet e ambos se chocam com força, saindo da corrida. Sem interrupção da prova o título seria de Senna. Senna preferiu não correr. Nunca o pódio demorou tanto para aparecer, pela discussão que a atitude gerou. Senna ficou com o bicampeonato. De uma maneira nada esportiva.

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Não foi a primeira das mutretas com que Senna fez sua carreira. Ainda na Fórmula 3, ganhou o campeonato pela mesma técnica heróica de “provocar acidentes”, dessa vez faltando muito pouco para “ferir gravemente” o inglês Martin Brundle:

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Senna tinha um guru, Nuno Cobra, desses pregadores malucos que aparecem e deixam Tom Cruises meio pineis. Tinha um método para “chegar ao cérebro pelo músculo e ao espírito pelo corpo”. Senna falava muito em Deus, e aproveitava para pregar onde quer que estivesse. Uma dessas foi a maior picaretagem de sua carreira.

Senna era o rei da difícil pista de Mônaco (lembram-se do nome do jogo do Mega Drive?). Quem dominava em Interlagos era… Prost. Seu rival, que nem brasileiro era. Em 91, Senna precisava fazer bonito em casa, finalmente. Ainda mais bonito dizendo que foi uma corrida difícil. Senna teve problema nos pneus no início. Então, diz que ficou sem a quarta marcha, faltando 20 voltas. Então sem a quinta, sem a terceira, 7 laps left. Então ficou só com a sexta. O resto em ponto morto. A narração das últimas voltas é considerada a melhor de Galvão Bueno, por mais paradoxal que isso seja. Mas Senna ganhou, né?

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“Eu lutei tantos, tantos anos pra chegar a isso. E hoje eu lutei tanto… vai ter que dar. Vai ter que chegar em primeiro porque Ele é maior do que todos. Ele vai me dar essa corrida depois de tudo. E foi isso mesmo: Deus me deu essa corrida.”

Não é possível dirigir em qualquer pista, ainda mais numa pista molhada (mesmo que fosse a especialidade de Senna) com uma ou duas marchas. Um piloto fica sem uma marcha hoje e perde 15 a 20 segundos por volta (numa corrida a 350 km/h, costuma significar algo como um quarto de circuito a cada volta). Podem perguntar a qualquer piloto. Mas foi uma excelente oportunidade para dizer que viu Deus na curva, que ganhou porque Deus deu a vitória para um de seus rebentos etc (como se todos os outros pilotos fossem filhos do capeta).

Em 94, novamente em Interlagos, os fãs de Senna mostrariam seu espírito de solidariadade. O grito de guerra (literalmente falando), era “Chora, Prost imundo – Ayrton Senna é o melhor do mundo”.

Na volta 50, com Senna em segundo, já começava a ter movimento de gente saindo de Interlagos. Na volta 56, com Senna rodado no meio da pista, o público vai embora. Pode-se dizer: “ora, esporte é assim mesmo”. Não é, esportes menos “humanistas” como o MMA não são assim.

Senna era desonesto como qualquer piloto e só se fazia de santo pra imprensa. Não há razões muito humanitárias para se esconder isso. Veja-se aqui o lado esportista de Senna: na corrida do Pacifico de 94 ele foi tocado pelo então rookie Mika Hakkinnen (o principal rival de Schumacher nos anos seguintes). Atente-se a um detalhe, Senna marcou mal nessa prova, e por isso ficou pertinho de Hakkinnen.

Senna:

“O que está acontecendo na F1 é que tem muitos pilotos jovens e inexperientes querendo mostrar seu talento. Eles expõem todos os demais a acidentes e isso vai continuar se não fizerem algo”. Tem mais dessa mesma retranca. Para Senna, Mika deveria ser chamado à atenção pela FIA e “avisado que da próxima vez vai receber uma punição.”

Hakkinen falou que o que aconteceu foi um “acidente de corrida”:

“Ele entrou na minha linha e eu escorreguei. Toquei atrás do carro dele. Depois fui pedir desculpas. Não posso dizer que palavras ele usou comigo, só te digo que não foram simpáticas”.

(O diálogo foi redigido por Flávio Gomes na Folha de S. Paulo de 18 de abril de 1994. Gostaria de saber o que Prost achou do “risco”)

Senna começou a culpar o carro pelas suas derrotas. Prost saíra da McLaren mais devido a impossibilidade de ganhar um título sendo companheiro de Senna do que por qualquer outro motivo. Lembremos: o último campeonato vencido por Senna foi em 91. Já era longínquo lembrar de um ano de Collor quando o presidente era Itamar. Queria sair da McLaren a todo custo: mas como o Senna tinha o pior carro se em 88 a McLaren venceu 15 das 16 provas? Isso é inferior onde? No meridiano de Greenwich? No túnel de vento da NASA? Detalhe: a corrida em que a McLaren não venceu foi porque nem Senna nem Prost completaram a prova.

A Williams dominou em 92 e 93, ficando sempre em primeiro e segundo lugar. Senna patinava na quarta, quinta posição. Conseguiu finalmente o seu contrato, mas agora não tinha Prost na equipe para poder ter uma certa “ajudinha” técnica com seus engenheiros. Senna não subiu ao pódio em 94.

Link vídeo | Prost fala sobre Senna, muitos anos depois.

No filme de Senna, o carro da Williams, agora sem os componentes eletrônicos, é visto de maneira tão instável que parece possuído pelo demônio e geneticamente modificado, ao mesmo tempo. Passo a palavra para Nelson Piquet, no Roda Viva:

Milton Coelho da Graça: “Eu quero só perguntar, você falou em falha mecânica, mas essa Williams tem um problema, porque ela estava com a suspensão ativa. E, visivelmente, a volta à suspensão convencional criou problemas estruturais no carro, que foram sentidos nos treinos e nas duas primeiras provas. O Senna, pelo menos…” [sendo interrompido]
Nelson Piquet: “Como faz sentido?”
Milton Coelho da Graça: “Porque o Senna deu várias declarações… Agora, eu pergunto a você” [sendo interrompido]
Nelson Piquet: “Declaração de quê? Que o carro não está bom, que o carro derrapa, que o carro é isso…?”
Milton Coelho da Graça: “Que o carro está instável, que o carro está inseguro, que o carro…” [sendo interrompido]
Nelson Piquet: “Mas, gente, ele andou a corrida inteirinha virando os mesmos tempos que o Schumacher no Brasil, com uma diferença de milésimos! Como é que vão falar que o carro está ruim, gente?”

Senna chegara em San Marino com 0 pontos contra 20 de Schumacher. É politicamente incorreto no Brasil dizer que Senna não foi o melhor piloto da Fórmula 1. Como o mundo inteiro considera que os irmãos Wright criaram o avião, e só o Brasil acredita em Santos Dumont. Mas cabe uma pergunta final: quem Senna estava tentando fechar em Ímola em 94, quando de seu acidente fatal? Se Schumacher conseguiu a fama de “Dick Vigarista”, por que não pechar da mesma forma quem já fazia isso quase uma década antes? Só por ser brasileiro?

Senna foi mesmo um dos maiores corredores de todos os tempos. Mas ídolo e herói nacional? Honestamente, acho que o Brasil tem pessoas melhores em quem podemos nos espelhar.

(Com colaboração dos mestres Roberto Aranha e Leandro Sarubo. Tendo como principal fonte o livro Ayrton Senna: o herói revelado, de Ernesto Rodrigues“)

Nota: texto editado pelo Guilherme, fã absoluto do Senna. Reforçamos, nossos textos não são a opinião do PapodeHomem. O PdH é a casa, cujas portas abrimos. Temos prazer em publicar artigos com os quais não concordamos, costuma ser sinal de boas discussões à frente.

Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.