Atropelamento de ciclistas na Massa Crítica em Porto Alegre

Você está dentro de um Golf preto, em Porto Alegre. À sua frente, um grupo com dezenas de ciclistas bloqueia a passagem.

Estão pedalando em menor velocidade. Aparentemente, alguma passeata ou movimento. Apressado, buzina e pede passagem. Insiste. Não consegue abrir caminho. Após três quarteirões, resolve desacelerar e tomar distância dos ciclistas. Tomar um caminho alternativo, talvez?

Não, em pleno surto psicótico, decide pisar fundo e ATROPELAR TODOS.

Impensável.

Corta.

Não é um sonho. É a reconstituição da tentativa de homícidio acontecida ontem - baseado nas coberturas disponíveis até o momento.

O evento em questão é conhecido como Massa Crítica, realizado tipicamente na última sexta-feira do mês, em mais de 300 cidades ao redor do mundo. Segundo os próprios,

A Massa Crítica é uma celebração da bicicleta como meio de transporte. Acontece quando dezenas, centenas ou milhares de ciclistas se reúnem para ocupar seu espaço nas ruas e criar um contraponto aos meios mais estabelecidos de transporte urbano.
Muitos dizem que a bicicleta no trânsito é quase que uma metáfora à fragilidade e impotência de um indivíduo frente à oposição violenta de governos, corporações e outros sistemas de repressão. A Massa Crítica então serve para nos mostrar que quando nos juntamos e apoiamos uns aos outros, podemos fazer frente à qualquer oposição.
A Massa Crítica é uma celebração para quebrar a monotonia, mecanicidade e agressividade do trânsito urbano, levando alegria e outros elementos mais humanos – braços, pernas e rostos – ao asfalto.
A Massa Crítica é organizada de forma horizontal, não tem representantes, porta-vozes, nem líderes. Ela não tem uma voz. Ela tem tantas vozes quanto participantes. Cada um é livre para levar a manifestação ou a reivindicação que quiser.
Juntos por um trânsito mais humano,  por cidades mais bonitas e alegres, por um mundo mais respirável: somos todos parte da Massa Crítica.

Até uma hora atrás, desconhecia a existência desse grupo. Pelo twitter, um leitor nos apontou para esse vídeo:

Link vídeo

Link vídeo

O momento do atropelamento, em flagrante

Link vídeo

O atropelamento criminoso, filmado por um ciclista

Link vídeo | Cena nos 0:50 é forte. Link nos foi enviado pelos leitores Tiago Sturmer Daitx e Estéfano Vechietti.

Pedi mais informações pelo próprio twitter e recebemos dezenas de replies de nossos seguidores. Segundo Vanderlei Capellari, diretor da EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação), o órgão não foi avisado sobre o que iria acontecer. Portanto, a iniciativa seria irregular.

Tá, entendo que a fala dele representa uma fantasmagórica entidade institucional. Mas e aí, como ficamos?

O veículo do filho da puta

Reforço, me espanta o surto do ser humano em questão. Não sei se estava drogado, se era um marginal em fuga ou apenas um de nós se rendendo a um impulso da mais absoluta loucura. Parece um efeito colateral de nossos tempos, um subproduto da insanidade urbana.

Mais do que nunca, a fala do Massa Crítica se faz relevante. Já possuem meu apoio:

A Massa Crítica é uma celebração para quebrar a monotonia, mecanicidade e agressividade do trânsito urbano, levando alegria e outros elementos mais humanos – braços, pernas e rostos – ao asfalto.

Caso algum de vocês tenha mais informações sobre o ocorrido, mandem para o posts@papodehomem.com.br, assim podemos atualizar com o depoimento de vocês.

Ao motorista do Golf desejo duas coisas. Uma belíssima surra e um julgamento por tentativa de homícidio.

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UPDATE 28/02, 11:03

Localizado o autor do atropelamento. Um homem de 47 anos, que estava acompanhado de seu filho de 15. Estão alegando LEGÍTIMA DEFESA. Matéria completa do Zero Hora.

Ricardo Neis, 47 anos, autor dos atropelamentos

"Eu estava passando com meu filho ali e fui agredido pelos ciclistas. Estou tremendamente transtornado com tudo o que aconteceu. Lamento muito o que aconteceu com eles (ciclistas) todos, mas eu não tive outra alternativa. Eu estava sendo agredido, eles quebraram o retrovisor."

declarou em depoimento.

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Depoimento enviado pelo Felipe Vincensi:

Olá,
Como pedido estou mandando meu depoimento sobre o ocorrido com os ciclistras em Porto Alegre. Sou o @felipevincensi.
Meu nome é Felipe Vincensi, tenho 20 anos e moro em Porto Alegre.
Toda última sexta-feira do mês o pessoal aqui na cidade se reúne pra pedalar junto e "celebrar o meio de transporte mais democrático, ágil, saudável e sustentável". Isso é a Massa Crítica. São pessoas que andam de bicicleta por prazer, por esporte, por trabalho, enfim: todos interessados em se reunir e fazer um belo passeio, como rola toda última semana.
Nessa sexta-feira, dia 25 de fevereiro, porém, a celebração foi interrompida logo no seu início. Eu ia chegar atrasado por causa do trabalho e ia encontrar todo o pessoal no meio do caminho (estamos falando de mais de 100 pessoas, andando nas ruas de forma pacífica). Liguei pra um amigo meu pra saber onde estava o grupo, e ele só me disse: "Meu, um cara atropelou todo mundo, tá todo mundo deitado no chão, tem ambulância e o cara fugiu". Procurei na internet e logo vi a notícia em um portal, minutos depois do ocorrido. Peguei minha bicicleta e saí em disparada pra lá.
Nas ruas próximas já se via uma movimentação lenta no trânsito, pois trancaram as ruas ao redor. Chegando perto já vi que tinha um baita tumulto na esquina da Rua José do Patrocínio com a Rua Luiz Afonso, no bairro Cidade Baixa. Essa localização fica a 3 quadras do local onde se inicia o passeio. Um aglomerado de bicicletas no meio da rua, todas reunidas e amassadas, e muita gente ao redor. A EPTC estava no local. Todos os ciclistras pra quem eu olhava e só se via um olhar de horror e indignação. Parecia que aquilo não tava acontecendo, não parecia real. Muitas pessoas já tinham ido pro hospital, algumas bem machucadas.
O que aconteceu: um motorista, vindo de carro atrás da marcha, começou a encostar o carro nos pneus dos últimos ciclistas, pra que eles saíssem da frente (bela maneira, não?). Só com esse toque um ciclista já caiu pro lado. Depois disso, o carro começou a acelerar, e a tentativa de homicídio teve início: ele foi passando no meio de todo mundo, acelerando, e jogando gente pra todo lado. Se tu olhar o estado do carro - que foi encontrado depois e saíram fotos hoje - dá pra ter uma ideia do que foi ( http://is.gd/Jz0ZW6 ). Um amigo meu estava bem no final da passeata, e o ciclista que caiu primeiro caiu em cima dele, e ele comentou "Não deu nem tempo de avisar 'Cuidado com o carro!', porque o cara foi acelerando". Como enquadrar isso como acidente, se foi claramente uma tentativa de homicídio? Foi um verdadeiro boliche humano.
Fiquei ali com todo o pessoal, chegou a Brigada Militar, imprensa já estava no local falando com todo mundo, câmeras e tudo mais. Pessoas passando pelo local perguntavam sobre o que tinha acontecido, e a reação era sempre a mesma: choque. Do tipo clássico "Como assim!?". Absurdo.
Ouvia conversas de alguns ciclistas com policiais, e vários tentavam mostrar como aquilo não foi um acidente, e sim uma tentativa de homicídio. A imprensa também divulgou a mesma coisa: "acidente". Não é possível que um jornalista, um policial, saiba a história, veja o vídeo, e considere aquilo um acidente. É revoltante, foi proposital. Nós temos imagens do que aconteceu, temos umas 150 pessoas testemunhas só da Massa Crítica, e mais dezenas que viram tudo acontecer, que viram o carro acelerando. Felizmente um morador de um prédio da rua gravou o momento que o carro passa por todo mundo - veja o vídeo: http://is.gd/OuBp06
A rua ficou fechada até altas horas, e um grande grupo de ciclistas ficou lá até o final, sentados na rua, em forma de protesto. Gritos como "Bicicleta!" seguidos pelo coro de "Um carro a menos!" saíam a toda hora. Mas o grupo não estava só protestando ali. Estavam revoltados, querendo levar todo mundo pra denunciar a tentativa, exigindo a polícia no local e fazendo o possível pra que o responsável por esse episódio seja condenado e preso.
Uma passeata, que é feita justamente pra conscientizar os motoristas sobre as bicicletas - um meio de transporte saudável, sem emissão de gases tóxicos, e que une as pessoas por uma causa como essa - termina com uma barbárie dessas. É, no mínimo, revoltante pra qualquer pessoa. Inclusive a marcha serve pra educar motoristas, pois alguns ciclistas levam placas penduradas na bicicleta escrito "1,5m" e uma seta, indicando que essa é a distância exigida de um carro pra passar um ciclista (por lei). A mídia e os "responsáveis" pela nossa segurança também não colaboram muito. A EPTC segue afirmando que com a escolta deles nada disso teria acontecido, que passeios desse tipo devem ser avisados. Mas como disseram em um post do blog da Massa Crítica de Poa:
"O passeio não recebeu acompanhamento da EPTC porque a idéia é essa mesmo! A Massa Crítica não quer tratamento especial, não é organizada por representantes que possam ou devam mandar avisos. Queremos simplesmente circular, em caráter ordinário e cotidiano, pela via pública, exatamente da forma como, na condição de cidadãos e condutores de veículos, temos o pleno direito de fazer. Sem qualquer caráter de excepcionalidade." (Em http://is.gd/YfhUUI )
Alguns ciclistas levaram seus filhos juntos no passeio. Imagina a preocupação dos pais com a segurança das crianças, sabendo que algo assim acontece e todos consideram um "acidente", que dificilmente as coisas vão ser realmente feitas pra mudar isso. Lembro de ouvir uma mãe, altamente revoltada, falando pra um policial ou guarda da EPTC: "Como eu vou deixar minha filha andar de bicicleta sabendo que um cara desses tá nas ruas!?". O pessoal tava realmente revoltado com a forma como os policiais tavam tratando a situação. Era ridículo.
Porto Alegre tem poucas ciclovias (ou quase nenhuma), e nós queremos é andar junto com os carros, nas vias públicas, respeitando e exigindo respeito de todos no trânsito. Ou então que sejam feitas ciclovias e aí sim tenhamos condições de andar tranquilos pela nossa cidade.
Mais amor, menos motor.
Um abraço, e que esse episódio não tenha sido em vão.

Depoimento do Luciano Viegas:

IVU1110 – A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE


publicado em 26 de Fevereiro de 2011, 13:05
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Guilherme Nascimento Valadares

Editor-chefe do PapodeHomem, co-fundador d'o lugar. Membro do Comitê #ElesporElas, da ONU Mulheres. Professor do programa CEB (Cultivating Emotional Balance). Oferece cursos de equilíbrio emocional.


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