A revolução educacional da Apple

A educação está em crise. Não só a brasileira, que sofre com a falta de infraestrutura, de professores capacitados/interessados e, muito, com a sina do “estudar para o vestibular”. Nos Estados Unidos, estão preocupados com o que e como suas crianças e adolescentes estão aprendendo.

Se aqui faltam elementos básicos para fazer a máquina funcionar bem, por lá a situação, pelo que se lê e pelo que se extrai das estatísticas, não é muito diferente. Parece que, com exceção da infraestrutura, todo o resto vai muito mal também.

Link TED | Sir Ken Robinson falando sobre os problemas do sistema de educação bem antes do iPad, em 2006

A Broad Foundation, cuja missão é melhorar os primeiros anos de escola pública dos pequenos norte americanos, divulgou dados alarmantes: 68% dos oitavanistas não conseguem ler no nível que deles se esperam, 1,2 milhão de jovens abandonam o Ensino Médio todo ano e, comparados a estudantes de outras 30 potências industrializadas, os estudantes da terra do tio Sam têm desempenho bastante modesto em matemática (25º lugar) e ciências (21º). No frigir dos ovos, todos esses números geram outros bem ruins para a economia, população mais pobre e infeliz e têm até conexão com as taxas de criminalidade.

Qual a receita para melhorar? Norman Pearlstine, chairman da Bloomberg Businessweek, reuniu um time de peso para tentar elucidar essa questão. Margaret Spellings, ex-Secretária de Educação, acha que a tecnologia pode desempenhar um papel de destaque nesse contexto.

Sabe quem mais acha isso? A Apple.

iTunes U, iBooks 2 e iBooks Author

Da distribuição de tablets xing-ling nas escolas, passando pela eterna promessa do OLPC e outras investidas tão frustradas quanto, chegamos ao evento da Apple realizado em Nova York no último dia 19 de janeiro.

Ele foi totalmente focado em educação, algo que já se esperava graças a diversas pistas dispostas na biografia autorizada de Steve Jobs. Pode ser que dê certo, pode ser que não, mas a Apple tem, agora, um leque de aplicativos que abrange boa parte do que um estudante precisa para aprender – tudo interligado, conectado, com a supervisão de professores e, mais importante, na plataforma computacional mais divertida da história, o iPad.

Te trouxe uma Apple, professor

A Apple anunciou três novidades semana passada, dois aplicativos para iOS (tablet/smartphone) e um para Mac OS X (computadores tradicionais).

O iTunes U é a evolução de um programa relativamente antigo, de 2007, que oferece cursos gratuitos por universidades e instituições renomadas. Convertido em aplicativo para o iOS, ele dá acesso imediato e irrestrito a dezenas de cursos das mais variadas áreas, com arquivos em áudio, vídeo, lições, anotações etc. O mais importante: tudo pode ser supervisionado por professores. Trata-se de uma real plataforma de ensino de mão dupla; o professor pode aproveitá-la para disparar exercícios, anotações e outros arquivos aos alunos.

A bibliografia é digitalizada através do iBooks 2, nova versão do aplicativo/loja de ebooks da Apple que, com essa atualização, passa a contar com livros didáticos. Antes de lançá-la, Tim Cook, CEO da empresa, firmou parcerias com as três maiores editoras de livros do gênero nos EUA, responsáveis por mais de 90% desse segmento, garantindo uma boa dose de livros de alto nível para o lançamento, um belo show case para escritores e editoras que queiram explorar essa novidade — e a Apple já mostrou no passado, com iTunes e App Store, que sabe criar filões milionários com a venda no esquema 70/30. Com preços bem em conta (nenhum livro custa mais do que US$ 15), a economia com material tende a ser enorme.

O que importa no iBooks, além do acesso, é que os livros são dinâmicos. Ao passear pelas páginas, o curioso estudante se depara com gráficos interativos, galerias de imagens em alta definição, vídeos saltando das páginas e revisões no esquema “Show do Milhão” ao final dos capítulos. A metáfora da Apple para o livro é um pouco diferente do que se viu até agora em abordagens como a do do Kindle, da Amazon: não é a simples transposição da leitura para um meio eletrônico, é a total transformação da experiência, aproveitando-se todo o potencial da nova plataforma.

Poder esse, aliás, que não está só nas mãos das grandes editoras. Com o iBooks Author, programa gratuito para Mac OS X, qualquer um ganha super poderes para criar seus livros didáticos com a maior facilidade do mundo. Com o espírito da suíte iWork (o equivalente-Apple ao Microsoft Office), o novo programa corta dificuldades e burocracias comuns à editoração, deixando ao autor apenas o trabalho da escrita e o arranjo dos elementos na tela.

Clique na imagem para ver outros exemplos de como ficarão os livros didáticos no iPad

Tudo muito bom, mas me diga os problemas

A Apple quer mudar a forma como se educa nas escolas e isso é muito nobre, digno de nota. Mas como toda empresa – e, veja bem, não há mal algum nisso –, o que ela quer mesmo é lucrar.

As ferramentas são todas gratuitas; os livros, muito baratos; mas há quem conteste a forma autoritária e fechada com que a Apple lida com seu ecossistema. No iBooks Author, por exemplo, os livros pagos produzidos por lá só podem ser vendidos pela iBookstore, a lojinha da Apple. É um contrato de exclusividade bem estranho, atrelado à ferramenta, não ao conteúdo, o que, embora não invalide, diminui a força da analogia dos contratos com editoras.

Essa questão vem suscitando muito debate, mas a conclusão mais lógica, aparentemente, é de que a Apple simplesmente repete o “modus operandi” de outras áreas, como na dos aplicativos para iOS. Em resumo: nós damos as ferramentas gratuitamente, mas mordemos 30% do que você lucrar em cima dela. Tenho lá minhas restrições quanto a esse pensamento, mas, reitero, a Apple está no seu direito.

Outro ponto polêmico é a barreira de entrada para esse novo mundo — o iPad. Mesmo nos Estados Unidos, a terra dos gadgets baratos, um tablet da Apple não é comprado com troco de pinga. O modelo básico, com conectividade Wi-Fi e 16 GB de espaço (que é um espaço bem pequeno para quem quer armazenar todos os seus pesados livros didáticos), sai por US$ 500. Uma grana boa, ainda mais se considerarmos que o objeto ficará sob os cuidados de crianças ou adolescentes, pessoas que se encontram numa fase da vida mais... “desastrada”, por assim dizer.

Os que defendem a ideia alegam que a economia com os livros (lembre-se: no máximo US$ 15; um livro didático convencional custa fácil US$ 80~100 por lá), somada ao universo de possibilidades que essa tábua mágica abre, valem o investimento. Não discordo, mas a família norte americana que passa apertada, com o desemprego e a hipoteca batendo à porta, provavelmente pensa um pouquinho diferente.

Link YouTube | Pink Floyd falando sobre os problemas do sistema de educação bem antes de Sir Ken Robinson, em 1982

Por que isso pode dar certo?

Apesar das críticas, ainda há muita coisa boa nessa investida educacional. Elementos que dão esperança, à Apple e aos apoiadores da revolução educacional, de mudanças.

Primeiro porque é algo alinhado com a realidade dos jovens, principalmente a dos norte americanos. O iPad foi o produto mais desejado no último Natal, é o tablet mais vendido do mundo por larga margem e... bem, preciso repetir, é a plataforma computacional mais divertida da história. A Apple, por sua vez, tem um longo histórico de forte presença e bom relacionamento em ambientes escolares e acadêmicos. Nota-se um harmônico casamento entre oferta e procura aqui.

O conjunto de ferramentas (iTunes U, iBooks e iBookstore) oferece um complemento realmente empolgante ao aprendizado tradicional que, por sua vez, não deve sumir — apenas ser aperfeiçoado. Integra diversos pontos cruciais à educação em uma experiência unificada, centralizada e funcional.

Pode ser que dê certo, pode ser que não. Talvez seja com a Apple, ou talvez uma nova startup ou outra empresa consolidada apareça com algo novo que “pegue”. De qualquer forma, é o primeiro passo para algo revolucionário. O mundo mudou, o sistema de ensino precisa mudar também.

Aliás, já deveria ter mudado há tempos.


publicado em 23 de Janeiro de 2012, 12:18
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Rodrigo Ghedin

Escreve sobre tecnologia, estuda comunicação e vive tentando entender a convergência dessas duas áreas. Está à frente do Manual do Usuário, um blog de tecnologia diferente. Ele não sabe consertar seu computador.


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