A economia da elevação

​O que está realmente faltando no mundo, na indústria da tecnologia e em nós mesmos

Neste artigo tratarei de muitas ideias diversas. Indústria de tecnologia, apps, liderança, sociedade, meu hamster de estimação e o ponto de tudo isso. Então, vamos começar do começo.

Em meu último artigo sugeri que a indústria da tecnologia tem criado hoje uma economia de infantilização. Zeladores, bots de conversação, assistentes pessoais, e assim por diante. Todas coisas que potencialmente tendem a infantilizar as pessoas – tendem a não serem libertadoras.

Neste ensaio, quero propor um questionamento inverso.

Será que apps da economia da infantilização podem ser usados para propósitos benéficos?

Com certeza.

Pensemos nos bots de conversação. Podemos utilizá-los para fazer médicos virtuais, ou professores virtuais, ou para ajudar homens sem noção a como não serem bobocas o tempo todo, e assim por diante. Pense nos apps “zeladores”. Podemos usá-los para ajudar a funcionar bem uma creche ou uma casa de cuidados para idosos, em vez de apenas estacionar os carros de luxo das pessoas. Considere os assistentes. Podemos utilizá-los para ajudar deficientes como eu, ou mesmo pessoas sem deficiência, mas vulneráveis, a operar um pouco melhor no mundo. E assim por diante. E vou parar por aqui, já que encontrar essas ideias não é minha prerrogativa – é a sua. O ponto aqui é:

Claro que sim. Como todas as tecnologias, os apps de infantilização podem ser usados para o bem.

Mas não é isso que a indústria de tecnologia está fazendo com eles.

Quando seu bot de conversação pergunta, “O que você quer fazer hoje?”, o que ele quer realmente dizer é: “o que você quer comprar hoje?”. Em outras palavras, bots de conversação, assistentes, zeladores, e assemelhados são essencialmente uma fachada interativa para marketing direto. Eles são como o Clippy (odiado mascote do Microsoft Word versão 6.0) do capitalismo.

Você vai entender o porquê desse bebê estar aqui.

Como se tornar um bilionário

Claro, a questão que tanto os geeks quanto a galera da grana vão se perguntar é: por que os apps de infantilização seriam algo além de fachadas para o marketing? Médicos virtuais? Esqueça! Robôs que façam reservas ultra super vip em restaurantes é que dão dinheiro, não é mesmo?

Errado.

Compare o Groupon com o Uber. O Groupon não veio para sanar uma necessidade social, e assim não tinha uma finalidade social. E nunca chegou nem perto de atingir o que parecia prometer.

O Uber, por outro lado, provavelmente é a maior história de sucesso dos últimos anos. E por quê? Porque satisfaz uma necessidade social real. Ajuda as pessoas a lidarem com o pesadelo que é o sistema de transporte e planejamento urbano que existe hoje.

E não é coincidência. É só economia. O mercado é mais amplo, a necessidade é maior, e o dinheiro que entra em cada pequena transação se acumula. As maiores oportunidades de lucro estão onde também estão as questões sociais.

Quando os investidores e os geeks acham que os maiores mercados e os maiores lucros em aplicativos são… reservas em restaurantes super ultra vip... a verdade é que não estão pensando grande o suficiente.

As indústrias que precisam de investimento são aquelas em que a falta crônica de investimentos resultou em problemas sociais. Transportes, educação, finanças, saúde, etc. Você não acha que um médico virtual ganharia mais do que um… agendador de restaurante? Claro que sim! E se você não acha, talvez precise cursar de novo a cadeira de introdução à economia.

Você lucra mais quando faz o mundo melhorar. Você realmente quer ser o bilionário de amanhã, esqueça o trivial, o desimportante e banal. Vá mudar o mundo: o mundo precisa desesperadamente de mudanças. Mas a verdade que sua melhor chance é fazer algo que importe, em vez de desperdiçar o tempo de todo mundo em coisas que não importam.

Ele está bem feliz com os US$ 6 bilhões de dólares que já ganhou. E você?

O que está realmente faltando no mundo, na tecnologia e em nós mesmos

O que nos leva a questão real: por que o mundo da tecnologia não entende isso?

Eu te respondo: porque as melhores mentes voltadas à tecnologia nessa geração estão trabalhando em… ajudar os ricos a lavar roupas um pouco mais rápido… ajudar bebês crescidos que receberam heranças e vivem de renda a fazer mais festa… enquanto que as oportunidades realmente grandes de lucro estão na reformulação da saúde, educação, transporte e finanças! E não é assim só porque eu estou dizendo, mas porque a realidade demonstra isso.

E isso se deve ao fato de que a indústria da tecnologia está esquecendo um ingrediente essencial. O ingrediente mais mágico e mais raro de todos. Não é dinheiro, talento, e nem mesmo novas ideias.

É liderança.

Qual é a tarefa de um líder? Fazer tudo isso acontecer. Não é só dar palestras e fechar negócios. É encontrar, criar, imaginar, projetar e fazer surgir formas de mudar o mundo para melhor. E talvez, quem sabe, construir com isso uma instituição, missão, organização, visão, cultura, que ponha isso em prática.

Mas é exatamente isso que a indústria de tecnologia não tem. Liderança. Tem um déficit severo e crônico de liderança. E é por isso que sistemicamente desperdiça seus recursos – talento, pessoas, ideias, dinheiro – em coisas que não importam. Mas esses recursos não duram para sempre. A festa acaba. E então precisamos fazer um balanço para ver o que realizamos de fato.

Os líderes guiam as pessoas ao que importa. Eles elevam e expandem as vidas humanas. A indústria de tecnologia pode fazer isso, sem dúvida. As ferramentas que está criando podem ser pequenos milagres. Mas isso não será o caso se não forem aplicadas a questões fundamentalmente melhores. E não coisas mais eficientes ou produtivas. Mas a coisas que melhorem radical e de forma duradoura a vida das pessoas.

Podemos até discutir os pormenores do que isso significa. Mas é fácil ver que um agendador de restaurantes super ultra vip não é isso, e um professor virtual, em meio ao fracasso presente de nosso sistema educacional, pode ser.

O primeiro trabalho de um líder é impacto > lucro

Isso não é tudo. Não é tudo, mesmo.

Então, por que a indústria de tecnologia não tem líderes? Bem, a verdade é que isso não acontece só na área de tecnologia.

O mundo hoje não tem líderes verdadeiros! Olhe ao redor. Hoje mesmo pessoas na Islândia, em Londres e Paris estão fazendo demonstrações em massa porque seus líderes… se mostraram o que: palhaços? Mentirosos? Incompetentes? Ora… estavam fazendo lavagem de dinheiro!

Então a liderança está em declínio acentuado no mundo todo. A qualidade dos líderes de hoje não é só terrível, fraca, tenebrosa – é catastroficamente ruim, não só inexistente, é negativa.

Meu hamster de estimação provavelmente é um líder melhor do que muitos dos que temos hoje. Muitos dos líderes de hoje não são só ruins – são antilíderes. Eles não só não nos levam a lugar algum – nos levam para trás. Pelo menos meu hamster não nos conduziria de volta para a idade média. O que o mundo realmente precisa, portanto, antes de tecnologia, instituições e até mesmo eleições, é de melhores líderes. Sem eles nada mais realmente faz sentido ou funciona.

O problema dos déficits de liderança não é exclusivo da área de tecnologia. Mas na área de tecnologia ele é generalizado. Encontra-se em todos os ambientes. Quase toda empresa de tecnologia já embarcou numa série de projetos de vaidade… e que fracassaram desastrosamente… isso quando também não viraram objeto de esculacho. Google Glass, sim, estou falando de você. Mas esse é só um pequeno exemplo.

Os déficits de liderança na indústria de tecnologia fazem com que se torne uma área que não entrega o que promete. Não só em termos de retornos para seus investidores, mas também em termos de impacto para a sociedade. A verdade simples é que, embora a tecnologia tenha acelerado ao ponto de disputar com a ficção científica – hoje você tem um comunicador de Jornada nas Estrelas em seu bolso – nada disso ajudou a prevenir ou mesmo mitigar a implosão da classe média, a explosão dos “novos pobres”, os jovens novamente se deparando com uma geração perdida, a demagogia subindo ao palanque de novo, e assim por diante. Os déficits de liderança na tecnologia são os mais visíveis na história dos Estados Unidos. A sociedade mais rica e tecnologicamente avançada do mundo é também a mais subdesenvolvida, estagnada, dividida e empobrecida dentre as nações ricas do mundo.

É um paradoxo surpreendente, não? O ponto aqui não é encontrar culpados. Temos que entender que a indústria de tecnologia simplesmente não está usando, desenvolvendo ou criando tecnologia com finalidades que tenham impacto social. A verdade é que apps para fazer reservas em restaurantes super ultra vip, e não médicos virtuais, vão empobrecendo um pouco a todos nós – empobrecem quem investe nisso, a sociedade, e a economia como um todo.

É exatamente isso que os líderes ausentes da tecnologia tinham que cuidar. Começar a colocar o impacto social pelo menos em par de igualdade, senão um patamar acima, em termos de rentabilidade. Isso é feito compreendendo que a rentabilidade, pelo menos do tipo que queremos – duradoura, verdadeira, e crescente – é melhor vista como uma função do impacto, e não o oposto disso.

A verdade é que não somos capazes de produzir líderes em salas de aulas e internatos, por mais que tentemos. É exatamente por isso que não os temos. Os líderes precisam viver, fracassar, passar por experiências, sofrer. Eles precisam ser tutorados, guiados, incentivados, cultivados. Eles precisam conhecer o impacto social em seus próprios ossos, antes que possam criar de forma visionária, e colocar em prática para benefício de todos.

Assim, se a indústria de tecnologia quiser voltar a ser relevante, provavelmente precisa desenvolver líderes melhores. Líderes capazes de realmente mudar o mundo. E como o mundo precisa ser mudado... Não só para agradar idealistas bobos como eu. Mas de forma que possa consertar os grandes problemas do mundo, criar os inovadores radicais do amanhã, e efetivamente ser merecedor do legado que deveria lhe pertencer de direito.

A economia da elevação

Eu chamaria esses itens acima de Economia da Elevação. Em muitos sentidos ela se contrapõe, e até, em certo sentido, talvez seja herdeira, da Economia da Infantilização. O desafio real para a tecnologia nos dias de hoje é criar essa economia elevada. É um desafio também para a maioria das outras indústrias, sociedades, países. Usei aqui a indústria de tecnologia como um pequeno exemplo de uma grande mudança.

Está vendo o bebê no topo dessa página? Ele não foi só para atrair o seu click. Sua tarefa é tornar a vida dele algo radicalmente melhor. Elevá-lo como ser humano. Tornar cada vez mais possível que ele crie, imagine, desafie, se rebele, construa, prospere e cresça. Sua tarefa não é engordá-lo feito uma cobaia humana, um cordeiro sacrificial no altar do capitalismo, ou vê-lo como um otário que se disputa para explorar, para ver quem consegue roubar primeiro sua carteira.

E esse é o caminho. Não somente lucrar, ou mesmo causar impacto. Mas se tornar um líder. E é isso que a tecnologia, o mundo e nós mesmos, precisamos tanto.

***

Nota da tradução: esse texto foi originalmente publicado em inglês no site Medium do autor e traduzido com sua autorização.


publicado em 01 de Maio de 2016, 00:05
Umair haque

Umair Haque

Diretor do Havas Media Labs e autor de "Betterness: Economics for Humans" e "The New Capitalist Manifesto: Building a Disruptively Better Business". Ele é considerado um dos mais influentes pensadores sobre gestão, pela Thinkers50. Siga no twitter @umairh.


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