Por melhor que seja o trabalho de Apollonia Saintclair, a artista ainda tem que comer muito feijão (ou escargot) até chegar a altura de seu conterrâneo Georges Pichard.
Por isso, um pequeno aviso ao leitor incauto: o que vem adiante é uma demonstração de que, no firmamento das obscenidades gráficas e das heresias eróticas, a estrela de Pichard brilha muito alto. Continue por sua conta e risco, evite o acesso se contar com menos de 18 anos de idade e não prossiga caso esteja em ambiente de trabalho.
Nascido em Paris no ano de 1920, esse senhor francês de humor cáustico ofendeu, nas décadas de 60 a 80 do século passado, muitos cavalheiros e damas defensoras da boa moral e dos bons costumes em seu país.
Mas a verdade é que bom não é irmão siamês do. Aplicada a Pichard, essa verdade fez com que seus detratores, mesmo quando o acusavam, para os padrões da época, de demasiadamente obsceno, fossem obrigados a reconhecer que seu trabalho sempre foi tecnicamente magistral, ainda quando moralmente ofensivo.
Egresso da École des Arts Appliques, após a Segunda Grande Guerra iniciou sua carreira com trabalhos publicitários. Em 1956, entrou para o mundo dos quadrinhos com trabalhos que já anteviam a sua temática predileta: o erotismo sem sutilezas e o prazer de ofender a Igreja.
Em 1967, enfrentou a primeira polêmica. Junto com Jacques Lob, criou Blanche Épiphanie, uma loira de 17 anos que defendia sua convicta virgindade contra o ataque de vilões (o pior deles, um banqueiro escroto) capazes dos mais ardilosos estratagemas para deflorá-la. Felizmente, sempre no último momento, surgia um misterioso herói mascarado para salvar nossa jovem, pura e virginal protagonista. A personagem estreou na V-Magazine, de propriedade de Jean-Claude Forest, ninguém menos que o criador de outra loira: a psicodélica. Mas isso é, literalmente, outra história.
Muito menos comportada foi a segunda personagem criada por Georges Pichard, dessa vez ao lado de Georges Wolinski. Em 1971, a dupla criativa apresentou ao público , uma loira com seios firmes e de moral frouxa. Diferente de sua antecessora, essa nova protagonista não estava assim tão convicta das vantagens de uma vida casta.
surgiu na edição de número 12 da revista de humor . Em suas aventuras, a moça vive de tudo um pouco: é sequestrada, forçada a viver no harém de um Sultão, tem um caso com Ali Babá, herda uma fortuna, vira comunista, insufla uma greve em um bordel (imagem acima), vai para o Vietnã, batalha contra o capitalismo e outras tantas estripulias pelas quais os autores alfinetam, a um só tempo, os religiosos, os conservadores, os machistas, as feministas, a esquerda e a direita.
O que observamos na evolução do trabalho de Georges Pichard é que, ao longo dos anos, ele passou a aproximar-se gradualmente de um tema perigoso: as relações de domínio no âmbito da sexualidade. Em suas obras, a tônica sempre foi a do exercício do poder nas relações sexuais.
Em , Philip Roth demonstra que, para além de nossas pretensões civilizatórias, o desequilíbrio e a relação de domínio daí decorrente não podem ser afastadas da sexualidade, pois é necessário atrito para alimentar as chamas do instinto. Toda relação de domínio tem um componente sexual ou toda relação sexual possui um componente de domínio, ainda que sutil?
Não importa.
O que Georges Pichard deixou claro em suas obras é que o domínio sexual não se restringe à relação homem/mulher, como as imagens a seguir deixam claro.
Em um trecho que Pichard apreciaria, Philip Roth expõe, através do protagonista de , a seguinte concepção sobre o assunto:
“O que está em jogo aqui é o caos do Eros, a desestabilização radical que é a excitação erótica. Na hora do sexo, todos nós voltamos para a selva. Voltamos para o pântano. O que há é um domínio, um desequilíbrio perpétuo. Você vai excluir o domínio? Você vai excluir a entrega? O domínio é a pederneira, é ele que produz a faísca, que dá início a tudo.”
Discussões literário-filosófico-sexuais a parte, Georges Pichard chegou ao ponto máximo da ofensa dos conservadores franceses com a publicação de Marie-Gabrielle de Saint-Eutrope, no ano 1977. Trata-se de uma obra que o Marquês de Sade colocaria com prazer em sua biblioteca, mas que deixou os contemporâneos de Pichard um bocado aborrecidos.
O motivo desse aborrecimento foi bem simples: na história, freiras torturam e humilham a protagonista para redimi-la de seus pecados. A comercialização de Marie-Gabriele foi proibida.
Em , os algozes da protagonista justificavam os abusos cometidos utilizando a legitimação do discurso religioso. Se o objetivo de Georges Pichard era incomodar a Igreja e seus fiéis, sem dúvida conseguiu — mas pagando um preço talvez alto demais. A verdade é que é inquietante e, até mesmo, muito desagradável em suas cenas mais violentas. Anos após a polêmica, Pichard procurou explicar as razões que o levaram a conceber uma história tão controversa:
“Tentei quebrar a noção de pornografia e fazer outra coisa. Sei muito bem que entre as pessoas responsáveis pelo sucesso relativo que foi Marie-Gabriele, há leitores que eu não gostaria de conhecer. Há vários tipos de proibições religiosas de conteúdo sexual. Eu queria colocar essas essas proibições em imagens. Para alguns, é só pornografia. Mas, na minha mente, não se tratava disso. Claro, são imagens violentas, muitas vezes difíceis de aceitar. Ms são imagens que correspondem muito bem a textos religiosos que usei, textos publicados por sacerdotes obscuros do final do século XVIII.”
(trecho de entrevista dada a Fred Coconut em novembro de 1985 e publicada na revista Ratatouille em fevereiro/1986).
Em seguida à , como que para escapar do clima claustrofóbico do catolicismo europeu, Pichard uniu-se novamente a Jacques Lob para fazer uma visita à Grécia mitológica, ao tempo dos deuses e heróis épicos. Seu projeto, ambicioso e muito bem-sucedido, era criar uma versão da que fosse, a um só tempo, descolada e fiel ao original.
E assim surgiu, em 1974, , um marco da década de setenta e excelente exemplo da cultura . A sacada dos autores foi não retratar os deuses gregos como divindades entediantes e de personalidade unidimensional, mas como seres psicodélicos e retrofuturistas, uma mistura de “rock-stars” com dotados de poderosa tecnologia, manipulando Ulisses e os outros mortais por vaidade e egoísmo.
Ao que tudo indica, os ares da antiga Grécia fizeram muito bem ao talento de Georges Pichard, pois a eles retornou ao publicar (Feiticeiras da Tessália), em 1978. Tessália, segundo a tradição grega, era uma região famosa por suas bruxas. Dentre as mais poderosas feiticeiras, estavam Meröe e Pamphile, ambas personagens da famosa obra de Apuleio, intitulada (séc. II D.C.). Inspirado nessa narrativa clássica, Pichard criou uma história em que, dessa vez, as vítimas eram os homens.
A adaptação de obras célebres é parte importante da biografia de Georges Pichard. Entre seus trabalhos mais bem sucedidos, está , baseado na história original de seu conterrâneo Prosper Mérimée.
Em 1985, Pichard adaptou (A Condessa Vermelha) de Sacher-Masoch. A história é baseada em fatos reais da vida da Condessa Isabel Bathory, condenada em 1611 por sacrificar jovens virgens e banhar-se em seu sangue para preservar a juventude.
Mas o talento de Georges Pichard chega ao ápice naquela que será sua adaptação definitiva. Trata-se de Le Kama Soutra (O Kama Sutra), trabalho realizado em coautoria com Joseph-Marie Lo Duca, inspirado no de Vatsyayana e publicado em 1991.
O grau de maturidade de Pichard no manejo da pena é revelado nos rebuscados arabescos e floreios em nanquim, que emolduram cenas em que a sexualidade ganha o colorido do imaginário que o ocidente alimenta sobre um suposto oriente místico. Se há um lugar em que a arte consegue encontrar a obscenidade de uma maneira natural e rebuscada, é nessa obra de Pichard.
Georges Pichard morreu em 2003, aos 83 anos, sem jamais ter pedido desculpas pelas polêmicas que causou. Deixou-nos, além de uma extensa e formidável obra, apenas o testemunho de sua modéstia e uma justificativa para seu estilo, quando afirmou:
“Na verdade, desenhamos com as mãos que temos e com nossas tentativas desajeitadas de dominá-las. E não desenhamos exatamente o que queremos. Quando à minha representação de mulheres curvilíneas, essa é uma forma, como qualquer outra, de representar a feminilidade.” (excerto de entrevista publicada em Cahiers de la BD, nº 27, em 1975).
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